publicado a: 2017-03-31

“Faz sentido comprarmos maçãs italianas, quando temos maçãs do Minho a desaparecer?

“Faz sentido comprarmos maçãs italianas, quando temos maçãs do Minho a desaparecer?

Encontramo-nos com Fortunato da Câmara pouco antes da apresentação pública do seu mais recente livro, “TOP – Tesouros de Origem Portuguesa” (edição A Esfera dos Livros). Título que serve de mote para esta conversa com o crítico gastronómico, cronista, autor premiado e um apaixonado pelo fenómeno alimentar, diplomado pelo Institut des Hautes Études du Goût, em França. Queremos perceber que tesouros são estes. Alimentares, obviamente. Mas o que os torna tão especiais? Uma conversa onde falamos das singularidades da geografia e clima portugueses, do espírito empreendedor de pequenos produtores, da excelência da nossa fruta, vegetais, carnes, lacticínios, de como produtos exportados ganham valor nos terroirs nacionais. Uma conversa motivadora que desperta o orgulho em produzir diferente, com amor e respeito pelo sazonal. Uma troca de palavras que também traz alguma amargura, associada à palavra extinção. O pêssego rosa de Colares está em perigo, como também está o peru preto do Alentejo. O próprio bacalhau merece mais atenção e alguns queijos são sistematicamente desvirtuados. Tudo contado na primeira pessoa.

Este seu “Top -Tesouros de Origem Portuguesa” não vem só valorizar o produto nacional. Acaba por ser um exercício de estímulo ao orgulho português. Andamos assim tão desmotivados em relação aos produtos nacionais?

Não diria desmotivados. Não nos podemos queixar do interesse que as pessoas demonstram pela gastronomia. Esta passou a ser quase o novo hobby nacional, um tema de conversa. Em tempos, as pessoas associavam o bom restaurante e o comer muito bem, à quantidade. Hoje vale pela experiência sensitiva, não apenas pelo ato de nos alimentarmos. Estamos, agora, a entrar nesta realidade, os chefs tornaram-se verdadeiras estrelas pop. Acresce que em Portugal temos a cultura do comer fora, mas agora num patamar acima, não apenas pelo convívio, mas pelo colecionar experiências. No que respeita aos produtos propriamente ditos, o público começa a querer conhecer as suas histórias.

Contudo, ainda de uma forma embrionária, concorda?

Em Portugal estamos ainda na infância. Encontramo-nos atrás de países onde tudo isto é natural, como a nossa vizinha Espanha, a Itália e a França. Há que fomentar a cultura do gosto pela comida, algo que ainda temos de aprender. Conhecer a particularidade dos nossos produtos. O comércio livre tem de existir, mas faz sentido estarmos a comprar maçãs italianas do Vale de Aosta, que fazem dois mil quilómetros para chegar a Portugal, levam uma cera para se manterem meses numa câmara frigorífica, quando temos maçãs do Minho a desaparecer, espécies autóctones, nossas? Repare, falamos de maçãs de árvores tipicamente portuguesas, com uma tradição de cultivo e apuro de dois, três séculos e que se está a perder.

Hoje a narrativa do nutricional, não pode cair apenas no comer variado, mas também dentro das frutas comer diferente.

O meu mais recente livro é um pequeno contributo para as pessoas irem, calmamente, formando uma consciência sobre toda esta riqueza que encontramos no nosso território.

Uma riqueza a que chama Tesouros de Origem Portuguesa. Qual foi o critério de seleção para os inscrever neste volume que agora publica?

O critério editorial é o meu gosto pessoal. Ficaram coisas de fora e óbvias. Se quisesse fazer um livro em torno dos DOP [Denominação de Origem Protegida] e IGP [Indicação Geográfica Protegida] teria uma lista com centenas de produtos. Neste livro preocupei-me em abordar realidades que estão em risco de se perder e que me parece são viáveis. Procurar caminhos para não banalizar alimentos únicos. Dou-lhe um exemplo, o peru selvagem, era uma carne excelsa, hoje a carne de peru industrial tornou-se insípida, seca. Há exceções, como o peru preto do Alentejo, criado próximo a Montemor-o-Novo, ao ar livre, em regime extensivo.

O que torna o nosso país tão especial quando falamos destas singularidades alimentares?

O nosso país caracteriza-se de uma forma muito simples, tem tanto de linha de costa como de linha de fronteira terrestre. São dois Ls que se encaixam. Um partindo da Foz do Guadiana, seguindo pelo litoral até Monção, no Minho. Outro daí, pela raia com Espanha, até ao Sotavento Algarvio. Dentro deste contexto, cabem regiões montanhosas e uma extensa linha atlântica. Dada a nossa localização pode afigurar-se estranho, numa primeira leitura, estamos integrados na denominada Dieta Mediterrânea. Mas é um facto, propiciado pela nossa forma de estar e pelo clima único. No meu livro cito um pomar de citrinos que se produzem no Alentejo e que está à mesma latitude da Calábria, em Itália, onde também se produzem citrinos, mas ali à beira ao Mediterrâneo.

Acresce ainda que nenhum outro território europeu tem duas grandes regiões no Atlântico, a Madeira e os Açores. Este último arquipélago está, creio, a usar apenas 10% da capacidade para produzir coisas extraordinárias. O continente também está subaproveitado.

Deixa-nos um travo amargo esta constatação. Saber que a linha que separa a existência da extinção de produtos únicos e inigualáveis está nas mãos de empreendedores isolados. Presumo que tenha assistido a esta realidade país fora, certo?

Um dos casos prende-se com a cherovia da Covilhã, um legume com a aparência de uma cenoura e a textura do nabo e que é também denominado pastinaca. Em Portugal não se encontra à venda fora da Covilhã, à exceção da que nos chega da Holanda e da África do Sul. Isto quando temos na Beira Interior uma cherovia de tão boa qualidade quanto esta que nos chega de fora. Os produtores fazem um festival anual e concentram a sua produção para vender nos dois ou três dias do evento. É claro que se não houver procura por parte do mercado ninguém vai investir.

O difícil é tornar o mercado receptivo à mudança…

Isto só muda com muito tempo e o interesse das pessoas. Há alguns anos ninguém se interessava por batata-doce. Até que alguém se lembrou de acompanhar os hambúrgueres com chips de batata-doce. A procura é enorme. Veja-se também o caso dos mirtilos. Hoje, a oferta é tanta que já há falências de produtores. Ou seja, aquilo que era uma coisa diferente e com um preço alto, torna-se massificada e sem margens para se manterem os negócios.

Quando se perde um destes produtos também é todo um património imaterial, geracional que se perde. Faltam registos documentais que nos sirvam de memória futura? Se sim, este livro procura, também colmatar essa fraqueza?

O pêssego rosa de Colares, proveniente de pessegueiros plantados em chão de areia, sofrendo a influência da brisa atlântica e da proximidade da serra é disto um exemplo. Não faz sentido falar de pêssego rosa do Oeste. Há um terroir associado ao alimento original. Uma cultura apurada durante séculos, com uma clientela fiel. Com o tempo tornou-se um produto de vendedor de beira de estrada, as árvores deixaram de ser rentáveis. As gerações seguintes perderam a sua ligação à terra e já não cuidam dos pessegueiros. Assim se perde um produto único.

Se lhe for possível sintetizar numa frase aquilo que lhe foi transmitido pela generalidade dos produtores que visitou, qual é esta?

Não é fácil sintetizar. Um denominador comum é o problema de vender os produtos fora do circuito da grande distribuição, procurando esta grandes quantidades. O que acontece é que alguns empreendedores, com produtos mais específicos, preferem exportar a um preço mais alto, para um cliente específico que vai valorizar, do que vender ao desbarato ao supermercado. Dou-lhe um exemplo, a cherovia tem um volume relativamente razoável de produção. Porque é que uma cadeia de distribuição não faz uma semana da cherovia e procura comprar uma grande quantidade? No passado já assistimos a bons exemplos, como fazer gelados de ananás dos Açores. Ou seja, criar um momento e, com isso, dinamizar a economia local. Hoje ainda se consegue criar a expectativa de consumo com as cerejas, dada a sua sazonalidade.

Em seu entender, chefs, foodies, profissionais da saúde alimentar, etc. têm andado distraídos face a esta riqueza portuguesa?

Felizmente temos uma geração de chefs que estão virados para o produto e também para a pegada ecológica, ou seja alimentos que venham de territórios próximos. Espero que este livro seja um estímulo e, também, um manual de consulta. Por outro lado, alguns produtores estão a conseguir escoar o seu produto. A cozinha ao estar na moda, está-o a diferentes níveis, do restaurante mais popular até ao de topo. O que marca a diferença é precisamente o fator surpresa, o produto singular e ai entra o contacto com o produtor.

Há instituições de ensino que estão a descobrir estes produtos e a encontrar-lhes novos usos. Teve essa preocupação no presente livro, alertar para esses desenvolvimentos?

Sim, por exemplo a atenção que a maça reineta está a merecer na Escola de Hotelaria de Colares. As escolas melhoraram muito nos últimos anos, não só nas instalações, mas também nos programas, na abordagem que se faz ao produto. Na região de Alvaiázere há uma instituição universitária [Instituto de Tecnología Química e Biológica] a fazer estudos com mais de cem variedades de chícharos, uma leguminosa. Inclusivamente é uma cultura que devolve azoto à terra, regenerando-a.

Quer salientar um ou dois exemplos de sucesso na valorização, comercialização dos produtos que inclui no seu livro?

Sim, os mini kiwis de Famalicão que se comem como uvas. O produtor queria deixar um legado aos filhos, algo associado à terra. Ele não é agricultor, o pai era. Não queria deixar um quintal com couves e batatas. Analisou o terreno que tinha, pesquisou diferentes culturas, avaliou o clima, no fundo fez um levantamento de todas as variáveis. O que é interessante é que quando fez os primeiros testes verificou que ao fim de dois anos as plantas já estavam a frutificar, quando em condições normais levariam três a quatro anos. Acresce que os kiwis têm cinco vezes mais vitamina C do que a laranja e estes são bastante doces. Neste momento este empreendedor leva seis anos de produção e vende para a Alemanha.

Em sentido contrário, durante o tempo que lhe demorou a produção deste “TOP – Tesouros de Origem Portuguesa”, assistiu ao desaparecimento de alguma destas preciosidades?

Encontrei um produtor que tinha um açafrão de grande qualidade, já exportava para França, mas faleceu. Repare, França é um país onde há açafrão certificado e um produtor nacional consegue lá colocar o seu produto. Entretanto, encontrei um casal que esteve emigrado na Suíça. A Guiomar, assim se chama esta empreendedora, tinha um terreno. Pensou em algo diferente. O açafrão gosta de stresse. Em Castelo Branco com grandes amplitudes térmicas anuais o açafrão encontra esse stresse. Tem de ser plantado no pico do verão, quando está muito calor, e não ser regado. No primeiro ano rebentam apenas algumas folhas, isto numa planta que completa um ciclo em oito ou nove anos.

A União Europeia tem sido uma parceira importante na salvaguarda destes produtos?

A União Europeia, no que respeita aos produtos certificados, tem sido importante no sentido de preservarmos algumas coisas. Cada país apresenta as suas propostas com a argumentação para proteger o produto A ou B. A Europa é exigente, mas depois depende de cada país defender os seus interesses e salvaguardar os seus produtos.

Dou-lhe um exemplo de como se pode desvirtuar um produto, neste caso o Queijo Rabaçal. O gastrónomo José Quitério foi o primeiro a escrever sobre a forma como o processo de feitura estava a deturpar a essência do produto. Trata-se de um queijo com 60% ou 70% de leite de ovelha e hoje encontramos produtos com igual quantidade de leite de cabra e de ovelha. Outra situação prende-se com o bacalhau, a única Especialidade Tradicional Garantida (ETG) que temos. Assistimos nos restaurantes à introdução de bacalhau de meia cura ou fresco. Acresce que em Portugal, como sempre se comeu o bacalhau de cura tradicional portuguesa, referimo-nos nas ementas dos restaurantes ao fresco e ao de meia cura unicamente como bacalhau. Os franceses como não têm tradição na cura, sempre diferenciaram o seco, o morue, do fresco, o cabillaud. O bacalhau está a perder completamente o sabor. Salvo no Norte, onde há uma grande tradição de tratar bem este peixe. Basta pensarmos no bacalhau descarregado em Matosinhos, chamado o Inglês, grosso, de cura amarela. Se não formos nós a pensar que temos estas especificidades, não será a União Europeia a salvá-las.

Por outro lado vivemos num mundo que permuta constantemente. No seu livro também encontramos exemplos recentes de produtos além-fronteiras que encontram excelentes condições em Portugal para se desenvolverem. Quer dar-nos um exemplo?

A inclusão destes produtos no presente livro pode parecer um pouquinho uma provocação. O que pretendo é demonstrar que o nosso clima propicia esta qualidade. O produtor do queijo Gouda que trago para o meu livro, não diz que o seu produto é melhor do que o Holandês, mesmo que ache isso. Ele, sendo holandês, com família com tradição na produção queijeira, faz os seus queijos em Portugal, nas condições que aqui temos, com a raça de animais holandesa, utilizando um método artesanal. O resultado é um queijo mais intenso, com uma vertente mais herbácea, menos láctea, porque temos uma erva mais verde, os invernos são mais curtos. Isto é um pouco como os portugueses que vão para o estrangeiro e abrem uma pastelaria com pastéis de nata.

O que gostaria que ficasse em cada um de nós depois de terminar a leitura do seu livro?

As pessoas sentirem a vontade de fazer algumas brincadeiras com as coisas. Por exemplo, na próxima vez que comprarem maçã reineta, que comprem duas espécies diferentes e façam a comparação. Com as batatas o mesmo, dentro destas há um mundo enorme de variedade, mais farinhentas, menos farinhentas, com mais propensão para serem cozidas, fritas ou em puré. Se o leitor quando fechar o livro fizer esse caminho de descoberta será bom. Por outro lado deve servir como um estímulo e incentivo aos produtores.

Fonte: Sapo

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