A calagem enriquece os pais mas pode empobrecer os filhos
Mais um artigo do Professor Catedrático Jubilado Joaquim Quelhas dos Santos, um grande nome da agricultura em Portugal, com uma vasta obra publicada, nomeadamente na área da nutrição vegetal, fertilidade do solo, fertilizantes e fertilização.
Trata-se de um provérbio muito antigo que certamente é do conhecimento de quem teve qualquer formação, mesmo que não muito avançada, no domínio da fertilização das plantas. Faço sobre ele uma breve reflexão principalmente para, mais uma vez, chamar a atenção para o facto de, ao planearmos uma fertilização, devermos ter bem presente que esta, pelo menos no nosso país, quase nunca poderá ser identificada com a adubação.
Efetivamente, na grande maioria dos casos, será necessários aplicar também corretivos orgânicos (ou, pelo menos no caso das culturas cerealíferas, explorar de forma conveniente, os resíduos que elas, de forma natural, tendem a devolver aos solos) e corretivos minerais, em particular os alcalinizantes, isto é, aqueles que têm por finalidade corrigir a elevada acidez presente na grande maioria dos nossos solos.
Será destes últimos corretivos, cuja aplicação é vulgarmente conhecida pela prática da calagem (a cal terá sido um dos primeiros produtos a aplicar com esta finalidade) que hoje irei falar. E faço-o, basicamente por dois motivos: i) para a maior parte dos nossos solos e culturas continua a ser necessário proceder á correção da excessiva acidez através da calagem; ii) foi a primeira prática agrícola que eu estudei e que comecei a divulgar nas acções então (1957/58) associadas a actividades desenvolvidas no âmbito do que poderia ser designado «fazer Extensão Rural».
Quanto ao primeiro aspecto, recordo que a correcção dos solos ácidos vai favorecer todos os aspetos (físicos, químicos e bióticos) associados à fertilidade global, nomeadamente através de: melhoria da estrutura do solo; alteração das formas químicas e consequente possibilidade de absorção de quase todos os elementos presentes nos solos, facilitando a utilização pelas plantas daqueles nutrientes que, de um modo geral, exigem em maiores quantidades (macronutrientes) e diminuindo as disponibilidades de quase todos os nutrientes que elas devem absorver mas em pequenas quantidades (micronutrientes); «bloqueio» de metais pesados (com vantagem para o desenvolvimento das plantas e de alguns aspectos da qualidade dos alimentos e das águas); aumento da mineralização da matéria orgânica e consequente aumento das disponibilidades de nutrientes; etc.
Acontece porém que, à semelhança do que aliás se deve verificar com todas as outras práticas agrícolas, a calagem, hoje em dias efetuada quase sempre com calcários, tem de ser praticada de modo correto, em particular no que respeita á quantidade de calcário, a qual vai depender do pH que a terra tiver e daquele que se pretenda atingir; e, sobretudo, do chamado poder tampão do solos, o qual, por sua vez, vai ser tanto mais elevado quanto maior for o teor de colóides orgânicos e minerais presentes no solo.
Este aspecto é particularmente importante, uma vez que, ao contrário do que até ainda não há muito tempo se pensava, as terras podem ter um mesmo pH inicial e exigirem quantidades de calcário muito diferentes para se obter o mesmo pH final, sendo a diferença tanto maior quanto mais elevado o valor do citado poder tampão.
O facto de não se atender a esta realidade estará na base de muitos insucessos que até há alguns anos atrás eram obtidos com a calagem. Mesmo assim, tais incessos estariam quase sempre associados á aplicação de uma quantidade de calcário inferior á que seria necessária.
É caso para dizer que «do mal, o menos»; isto porque se em vez de se cometer um erro por defeito (subcalagem) se tivessem cometido um erros por excesso (sobrecalagem) a fertilidade passaria agora a ser afectada negativamente, com a agravante de que enquanto uma subcalagem tem solução fácil (resolve-se adicionando mais calcário) já uma sobrecalagem é sempre difícil de corrigir (seria necessário aplicar um corretivo acidificante, em geral o enxofre, e água em abundância e com garantia de condições de drenagem suscetíveis de arrastar os sais em profundidade.
De qualquer modo, como a calagem não actua de imediato, é provável que os efeitos negativos da sobrecalagem não se façam sentir logo no curto prazo; poderia então admitir-se que ela justificaria o provérbio, isto é, as produções poderem aumentar no curto prazo (tempo dos pais) e virem a diminuir a médio prazo (tempo dos filhos). No entanto, em meu entender, a justificação é outra e baseia-se no facto de muitos agricultores, quando efectuavam a calagem, considerarem que podiam poupar na aplicação de adubos.
No curto prazo, como a calagem, se correcta, terá desbloqueado apreciáveis quantidades de nutrientes existentes no solo, as produções, mesmo assim, em igualdade de outos factores teriam tendência para aumentar (enriqueciam os pais); mas, a continuar com a mesma prática, passados alguns anos a fertilidade entrava em declínio (os filhos empobreciam).
Devo dizer que encontrei este mesmo provérbio num muito antigo livro italiano mas que em vez de referir a calagem referia o regadio (no regadio, porque se elimina um factor limitante, a falta de água, as plantas podem produzir mais; quando produzem mais exportam mais nutrientes do solo; e, se não for reforçada a adubação, a fertilidade dos solos passa a diminuir). Aliás, em meu entender, o provérbio é válido para todas as práticas agrícolas efectuadas sem ter tomar em devida consideração o problema da sustentabilidade do sistema de exploração do solo.
Quanto ao aspecto pessoal que comecei por referir, direi apenas (porque o texto já está outra vez longo) que este problema constituiu o objecto do meu Relatório final de Curso (naquela altura, como creio que ainda há muitos que sabem, a parte escolar tinha a duração de 5 anos e o Relatório Final, indispensável para o reconhecimento da Licenciatura, demorava cerca de 2 anos; tinha de se contar com um mínimo de 7anos!). O tema da calagem e da fertilização em geral foi amplamente divulgado em acções de Extensão Rural que no início mencionei.
Joaquim Quelhas dos Santos