publicado a: 2015-02-02

Pode um documentário sobre vacas mudar os nossos hábitos?

Chamam-lhe  "Cowspiracy", a conspiração da indústria da carne e revelam dados que a provam, alegam os realizadores. Já exibido em Portugal, o documentário reabriu a discussão sobre a alimentação sustentável — e até já mudou hábitos.


Não tem (muitas) imagens que impressionam, ao contrário do que acontece com outros documentários que alertam para a realidade da criação de animais para consumo. São os números, apresentados em hora e meia, que mais chocam quem assiste a “Cowspiracy — A Sustainability Secret”. Entre tentativas falhadas de chegar à fala com associações de defesa do ambiente, entrevistados que evitam questões incómodas e especialistas que sublinham o impacto altamente nocivo da exploração pecuária intensiva para a saúde da Terra, Kip Andersen e Keegan Kuhn criaram um documentário “que incentiva as pessoas a agir, sem ser impeditivo”.

A análise é de Rita Silva, presidente da Animal há já 11 anos. “Tenho recebido dezenas de e-mails de pessoas, que me conhecem ou não, que depois de verem o filme ficaram mesmo mudadas, tiveram um clique”, diz em entrevista ao P3. No início de Janeiro, “Cowspiracy” foi exibido num cinema de Lisboa, com sessão dupla. A iniciativa partiu de Rita e do apresentador de televisão João Manzarra. A primeira é amiga de um dos realizadores do filme e desde que ouviu falar dele que o queria passar em Portugal. O segundo reconheceu o impacto que ver o documentário teve na sua vida: perante milhares de seguidores nas redes sociais, Manzarra assumiu uma nova dieta baseada em produtos de origem vegetal e vendeu a participação numa petisqueira da qual era sócio, por uma questão de consciência.

Sheila Teodoro foi uma das espectadoras no cinema do Saldanha Residence. Já tinha ouvido falar do filme, mas não sabia propriamente o que esperar. Como veterinária, a jovem tinha noção de algumas das consequências ambientais da agro-pecuária mas não estava preparada para os números: “Depois de ver os factos foi fácil mudar”. Sheila, que não come carne há perto de 20 anos, abandonou de vez os derivados de origem animal e o peixe. Sente-se bem com esta mudança alimentar — “hoje em dia é tão mais fácil ser-se vegano do que era há 20 anos” —, consequência assumida dos factos revelados por Kip e Keegan, os autores do documentário. “Para mim, faz todo o sentido, sobretudo depois de saber a percentagem de emissão de gases, o gasto de água na produção de lacticínios e o impacto nos oceanos”, enumera.
A mesma reacção teve Raquel Graça, designer freelancer de 30 anos: “Tu olhas para aqueles dados e pensas: tenho que fazer alguma coisa para contrariar isto”. Assim Raquel pensou, assim o fez: a carne deixou de fazer parte da dieta, bem como o leite de vaca. Reduziu o consumo de queijos e ovos e passou a comprar aqueles cuja origem conhece, com a preocupação de optar por produtos locais — agir localmente para alcançar um impacto global. “Não sou defensora de radicalismos, apenas de agir de forma sustentável. É isso que tenho tentado fazer”, explica.

Má distribuição dos alimentos produzidos
“Não seria necessário todos deixarmos de comer carne. Seria, isso sim, que todos deixássemos de comer tanta carne”, defende a jovem que vive no Porto. Opinião similar tem o presidente da Quercus, Nuno Sequeira, que acrescenta outros dados à discussão. A média anual de consumo de carne está, actualmente, nos 40 quilogramas por pessoa; na década de 60 do século XX, ficava-se pelos 25. “Mais do que discutir se devemos optar por um regime exclusivamente vegetariano ou não, o documentário reitera que todos temos que fazer um esforço para alterar a nossa dieta alimentar”, acredita.
Ao P3, o Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente (GEOTA) observou ser “fácil concordar” com a redução de ingestão de proteínas de origem animal, mas que esta implicaria “enormes desafios”. “Será, sem dúvida, uma revolução global inevitável para a civilização humana, tal como a conhecemos, poder sobreviver", remata. Até porque, de acordo com o filme, uma dieta vegetariana reflecte-se numa diminuição de 50% da pegada de carbono de cada um na Terra.

Há estimativas da Organização da ONU para a Alimentação e Agricultura (FAO) que vão ao encontro desta ideia: é produzida uma quantidade suficiente de alimentos, a nível mundial, para alimentar de forma satisfatória toda a população terrestre. São é mal distribuídos — há 1.500 milhões de pessoas com excesso de alimentos.

Podem 51% das emissões globais de gases com efeitos de estufa ter origem na pecuária e em todos os seus produtos derivados, um valor muito superior àquele da responsabilidade de todos os transportes combinados (13%)? Segundo dados da associação World Watch, sim. Mas para a FAO, a percentagem desce para os 18%. A discrepância pode explicar-se, sugere o presidente da Quercus, pelo facto de nas contas da FAO estar apenas considerada a produção e não o transporte, por exemplo.


Portugal com elevada pegada hídrica

A dupla de realizadores norte-americanos centrou-se, sobretudo, na realidade do seu país. Mas, e em Portugal? “A nossa realidade é comparável numa outra dimensão”, alega Rita Silva, concepção que o secretário-geral da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP), Luís Mira, partilha. “A forma de alimentação dominante nos EUA é uma aberração em termos de carga calórica e de quantidade, levando aos graves problemas de obesidade que todos conhecem. Um exemplo: num restaurante americano serve-se uma costeleta com 700 gramas, o que é impensável em Portugal”, afirmou, remetendo para as declarações ao “Expresso”.

Portugal é dos países europeus com maior pegada hídrica, aponta Nuno Sequeiro: 80% da água consumida é para efeitos de agricultura. A nível mundial, de acordo com o documentário, um terço da água doce da Terra é gasta na indústria da carne e dos lacticínios; o valor médio da União Europeia é ainda mais elevado, chegando aos 46%.

Na introdução do filme, Kip conta como “Uma Verdade Inconveniente” (2006), do antigo vice-presidente dos Estados Unidos Al Gore, teve um impacto impressionante na sua vida. Os dados que o Prémio Nobel da Paz de 2007 revelou fizeram com que Kip se tornasse “obcecado pelo ambiente”: passou a reciclar absolutamente tudo, a usar a bicicleta como principal transporte, a tomar duches mais curtos e a fechar a torneira na hora de lavar os dentes.

Achava que estava a fazer tudo que podia para “mudar o mundo” — afinal, parece que não. Estes gestos ajudam, claro, considera Raquel. Mas, tal como o realizador de “Cowspiracy”, também a jovem se apercebeu que um banho mais curto “representava uma coisa mínima”. “Isso foi mesmo o choque maior”, confessa, porque “não tinha noção dos números”: 2500 litros de água são suficientes para dois meses de banhos de chuveiro, mas apenas chegam para a produção de um hambúrguer.

Ao não mencionar o impacto da pecuária nas alterações climáticas, Al Gore deixou Kip “desiludido”, que juntamente com Keegan trabalhou durante meses para perceber como o assunto está a ser tratado. Associações de defesa do ambiente de nível global recusaram-se a prestar esclarecimentos ou sequer a recebê-los. A "Greenpeace" — provavelmente a mais conhecida e mediática — foi uma das que declinou. Raquel sentiu-se “muito enganada”. “Tu achas que são elas que têm um papel importante em tentar mudar algumas coisas e estão é a encobrir dados, a varrer para debaixo do tapete.”

Kip e Keegan, que a meio das filmagens viram uma das fontes de financiamento retirar o apoio, recorreram a uma campanha de “crowdfunding” em 2014. Inicialmente pediram 54.000 dólares (47.600 euros), terminaram com mais de 117.000 ( perto de 103.000 euros). O DVD do documentário pode ser adquirido por perto de 18 euros e a visualização online não chega aos 9 euros. Parte dos objectivos dos dois amigos — revelar a conspiração que acreditam existir na indústria agro-pecuária e pôr as pessoas a pensar sobre o assunto — parece ter sido alcançada.

Fonte: p3 - Público

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