Pode um documentário sobre vacas mudar os nossos hábitos?
Chamam-lhe "Cowspiracy", a conspiração da indústria da carne e revelam dados que a provam, alegam os realizadores. Já exibido em Portugal, o documentário reabriu a discussão sobre a alimentação sustentável — e até já mudou hábitos.
Não tem (muitas) imagens que impressionam, ao contrário do que acontece com outros documentários que alertam para a realidade da criação de animais para consumo. São os números, apresentados em hora e meia, que mais chocam quem assiste a “Cowspiracy — A Sustainability Secret”. Entre tentativas falhadas de chegar à fala com associações de defesa do ambiente, entrevistados que evitam questões incómodas e especialistas que sublinham o impacto altamente nocivo da exploração pecuária intensiva para a saúde da Terra, Kip Andersen e Keegan Kuhn criaram um documentário “que incentiva as pessoas a agir, sem ser impeditivo”.
Há estimativas da Organização da ONU para a Alimentação e Agricultura (FAO) que vão ao encontro desta ideia: é produzida uma quantidade suficiente de alimentos, a nível mundial, para alimentar de forma satisfatória toda a população terrestre. São é mal distribuídos — há 1.500 milhões de pessoas com excesso de alimentos.
Podem 51% das emissões globais de gases com efeitos de estufa ter origem na pecuária e em todos os seus produtos derivados, um valor muito superior àquele da responsabilidade de todos os transportes combinados (13%)? Segundo dados da associação World Watch, sim. Mas para a FAO, a percentagem desce para os 18%. A discrepância pode explicar-se, sugere o presidente da Quercus, pelo facto de nas contas da FAO estar apenas considerada a produção e não o transporte, por exemplo.
Portugal com elevada pegada hídrica
A dupla de realizadores norte-americanos centrou-se, sobretudo, na realidade do seu país. Mas, e em Portugal? “A nossa realidade é comparável numa outra dimensão”, alega Rita Silva, concepção que o secretário-geral da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP), Luís Mira, partilha. “A forma de alimentação dominante nos EUA é uma aberração em termos de carga calórica e de quantidade, levando aos graves problemas de obesidade que todos conhecem. Um exemplo: num restaurante americano serve-se uma costeleta com 700 gramas, o que é impensável em Portugal”, afirmou, remetendo para as declarações ao “Expresso”.
Portugal é dos países europeus com maior pegada hídrica, aponta Nuno Sequeiro: 80% da água consumida é para efeitos de agricultura. A nível mundial, de acordo com o documentário, um terço da água doce da Terra é gasta na indústria da carne e dos lacticínios; o valor médio da União Europeia é ainda mais elevado, chegando aos 46%.
Na introdução do filme, Kip conta como “Uma Verdade Inconveniente” (2006), do antigo vice-presidente dos Estados Unidos Al Gore, teve um impacto impressionante na sua vida. Os dados que o Prémio Nobel da Paz de 2007 revelou fizeram com que Kip se tornasse “obcecado pelo ambiente”: passou a reciclar absolutamente tudo, a usar a bicicleta como principal transporte, a tomar duches mais curtos e a fechar a torneira na hora de lavar os dentes.
Achava que estava a fazer tudo que podia para “mudar o mundo” — afinal, parece que não. Estes gestos ajudam, claro, considera Raquel. Mas, tal como o realizador de “Cowspiracy”, também a jovem se apercebeu que um banho mais curto “representava uma coisa mínima”. “Isso foi mesmo o choque maior”, confessa, porque “não tinha noção dos números”: 2500 litros de água são suficientes para dois meses de banhos de chuveiro, mas apenas chegam para a produção de um hambúrguer.
Ao não mencionar o impacto da pecuária nas alterações climáticas, Al Gore deixou Kip “desiludido”, que juntamente com Keegan trabalhou durante meses para perceber como o assunto está a ser tratado. Associações de defesa do ambiente de nível global recusaram-se a prestar esclarecimentos ou sequer a recebê-los. A "Greenpeace" — provavelmente a mais conhecida e mediática — foi uma das que declinou. Raquel sentiu-se “muito enganada”. “Tu achas que são elas que têm um papel importante em tentar mudar algumas coisas e estão é a encobrir dados, a varrer para debaixo do tapete.”
Kip e Keegan, que a meio das filmagens viram uma das fontes de financiamento retirar o apoio, recorreram a uma campanha de “crowdfunding” em 2014. Inicialmente pediram 54.000 dólares (47.600 euros), terminaram com mais de 117.000 ( perto de 103.000 euros). O DVD do documentário pode ser adquirido por perto de 18 euros e a visualização online não chega aos 9 euros. Parte dos objectivos dos dois amigos — revelar a conspiração que acreditam existir na indústria agro-pecuária e pôr as pessoas a pensar sobre o assunto — parece ter sido alcançada.
Fonte: p3 - Público