Resíduos nos produtos biológicos são sinónimo de fraude?
O agrozapp apoia e defende todos os tipos de agricultura que cumpram as regras de segurança alimentar (e não só). Considera, por isso de extrema importância, que haja clareza na informação que circula na comunicação social. Neste sentido, hoje divulga dois artigos que, junto com os seus consultores, considera corretos e bastante informativos.
- QUE FRAUDE NOS BIOLÓGICOS? Artigo publicado na Plataforma Trangénicos Fora, da autoria de Jorge Ferreira (Engº agrónomo, Consultor da produção biológica na Agro-Sanus) e Margarida Silva (Bióloga, Professora da Universidade Católica e colaboradora da Plataforma Transgénicos Fora), que analisa e comenta o estudo da Visão "Fraude nos biológicos".
- OS RESÍDUOS - UMA QUESTÃO SENSÍVEL. Resumo do artigo da Bio Swiss (federação de agricultores biológicos suíços), publicado na revista Bioactualités, que mostra várias explicações para os resíduos de várias substância em produtos biológicos, sem que isso seja sinónimo de fraude.
QUE FRAUDE NOS BIOLÓGICOS?
O artigo da Visão de 29.6.2017 aponta a presença de resíduos de pesticidas de síntese química em alimentos de agricultura biológica, onde estão proibidos. Foram detetados pesticidas em 21 dos 113 alimentos analisados (18,5% das amostras). Apenas um alimento (0,9%) tinha resíduos acima do limite máximo (LMR) legal para a produção convencional (caso do glifosato em couve-coração). Em cinco outros é referido que os teores estão acima dos níveis indicativos de possível fraude para a produção biológica (valores estes que são menores que o LMR).
Assim, os dados apontam para que, nas 113 análises, sete sejam de provável fraude (6,2%). Incluem-se as bagas Goji chinesas, que contêm 8 pesticidas diferentes - o que é inaceitável. Para os restantes 14 alimentos com pesticidas, os baixos teores apontam para contaminação adventícia ou importação de países onde as regras para o bio não são iguais. Ou seja, razões não fraudulentas.
O caso do glifosato é o mais estranho, pois este herbicida mata as couves em que for aplicado. A amostra devia ser testada de novo (para despistar erros) em laboratório com análises acreditadas (o Labiagro, escolhido pela Visão, indicava em documentação recente que as suas análises ao glifosato não estavam acreditadas).
Ao contrário do que se pensa, as normas comunitárias da agricultura biológica não garantem a ausência de resíduos de pesticidas de síntese química. Para tolerância zero todos os lotes de todos os produtos de todos os operadores teriam de ser testados - o que seria incomportável. Em Portugal o Ministério da Agricultura estabeleceu que as análises abranjam no mínimo um produto em 5% dos produtores. Assim, mesmo que todos os procedimentos sejam seguidos, é garantido que vão chegar ao consumidor alimentos biológicos com alguns resíduos não permitidos - sem que haja necessariamente fraude. Só nos lotes em que há análises e esses resíduos são detetados é que há desclassificação dos produtos. Se a concentração ultrapassar os valores limite para contaminação adventícia então presume-se fraude e o produtor é penalizado.
Os resultados obtidos pela Visão são graves? Nem por isso, de acordo com os dados oficiais mais recentes sobre pesticidas em toda a União Europeia:
- alimentos com pelo menos um pesticida: 47% no convencional e 14% no biológico (19% no estudo da Visão);
- alimentos com resíduos acima do LMR: 2,9% no convencional e 0,7% no biológico (0,9% no estudo da Visão);
- alimentos biológicos com resíduos que indiciam aplicação fraudulenta: 8,3% (6,2% no estudo da Visão).
A terceira comparação mostra que no que toca a fraudes a Visão encontrou uma situação mais favorável ao biológico do que existe na média europeia. Isto nega muito da suposta gravidade revelada no artigo e permite concluir que a "fraude" não terá a dimensão que lhe é atribuída. Quanto à diferença de 5% na primeira comparação ela pode vir, por exemplo, de o jornalista ter comprados vários alimentos bio de uma só marca (qualquer falha nesse produtor vai inflacionar a média). Além disso é voz corrente que as lojas da especialidade são mais cuidadosas com a origem dos produtos. Qual a percentagem de alimentos contaminados nos hipermercados e qual nas lojas que só vendem biológico? Tudo isto pode mudar os números.
Em qualquer caso há margem para melhorar o funcionamento do controle ao biológico em Portugal, a começar pela fiscalização às próprias certificadoras. Existe o risco do nivelamento por baixo na concorrência pela busca de novos clientes. As autoridades oficiais envolvidas (Ministérios da Agricultura e da Economia), em articulação com a ASAE, são chamadas a agir com maior rigor. É altura de divulgar anual e publicamente os resultados das análises feitas por cada certificadora, e também o controlo governamental a essas empresas. Só com transparência se defende quem trabalha bem e frequentemente é mais exigente que as próprias normas do setor.
Por outro lado o próprio artigo da revista Visão carece de transparência. Por exemplo a origem do financiamento para as análises. Quem arcou com os custos? É prática comum revelar quem paga para evitar encobrir conflitos de interesses. Não é preciso muita imaginação para pensar em setores económicos com vontade de desacreditar o biológico.
Outra dimensão que transcende o aspeto objetivo das análises é o tom que repassa todo o texto. Fraude é um ato de má fé, para enganar. Embora a certa altura se diga que os incumprimentos não são necessariamente fraude, a Visão e o jornalista enviesaram a peça no sentido de deixar marcada a sensação de fraude generalizada no bio. Esta postura talvez não seja de admirar visto que em 23.7.2016 o mesmo profissional apresentava os benefícios ambientais do biológico como sendo um "mito”. Esses mesmos benefícios ambientais que, na peça atual, acabam por ser os únicos reconhecidos.
Resumindo, por arrasto de análises que provam que há problemas, retirou-se a conclusão que a agricultura biológica é um problema. Se o objetivo era pôr em causa toda a fileira, a escolha do único entrevistado sobre a lógica global do bio não podia ser mais acertada: o Prof. Pedro Fevereiro, que dirige uma associação financiada pela indústria dos pesticidas e transgénicos.
A comparação científica entre produtividades das duas formas de agricultura envolve muita controvérsia, e os benefícios para a saúde e ambiente da agricultura biológica precisam de mais estudo. Mas "o elefante na sala" é que a agricultura convencional é esmagadoramente insustentável. A maior análise sobre o futuro da agricultura, liderada pela FAO e pelo Banco Mundial e que envolveu centenas de cientistas durante vários anos, concluiu que é necessária uma profunda transformação agrícola para fazer face aos desafios das próximas décadas. Por isso não sabemos tudo sobre a agricultura biológica em grande escala, mas podemos partir com segurança de uma premissa: o paradigma agrícola dominante não serve. A maior fraude é tentar convencer o público do contrário.
OS RESÍDUOS - UMA QUESTÃO SENSÍVEL
A existência de resíduos nos produtos biológicos é facilmente explicada pelo facto dos métodos analíticos terem sido significativamente melhorados nos últimos anos, pelo que conseguimos agora detetar microgramas por quilograma. Um micrograma por quilo pode ser representado, por exemplo, por um pacote de açúcar num tanque de três milhões de litros.
Os agricultores não têm controlo sobre todos os resíduos e as causas são tantas como os próprios resíduos. Podem ser facilmente explicadas por contaminações cruzadas (através de contaminação do solo, utilização dos mesmos utensílios em agricultura convencional e biológica, etc.).
Os resíduos também podem vir da poluição ambiental geral - metais pesados, dioxinas e outras substâncias descarregadas em quase qualquer lugar do mundo pela indústria e incineração de resíduos. Muitos resíduos não podem ser influenciados pelos produtores biológicos, não podemos, por isso, exigir que os produtos biológicos sejam completamente livres de resíduos, porque eles não podem ser mais “limpos” do que o próprio meio ambiente.
Apesar da delicadeza dos métodos analíticos e do grande número de riscos de contaminação, vários estudos mostram que 95% de produtos biológicos são livres de pesticidas químicos sintéticos ou contêm apenas vestígios de resíduos (menos de 0,001 mg / kg ). O padrão de 0,01 mg / kg, foi adotado como um valor de referência pela Federação Alemã da alimentação natural e dos produtos naturais (BNN Bundesverband für Naturkost und Naturwaren) e pela Bio Suisse após anos de experiência, porque a experiência tem mostrado que os resíduos abaixo deste valor são geralmente devido a uma contaminação não intencional.