Associações queixam-se de que fundos para a agricultura apoiam projectos que não são sustentáveis
Marta Martins, arquitecta de 31 anos, nunca tinha ouvido falar em hidroponia, um sistema de cultivo feito dentro de estufas e sem uso de solo. Mas quando uma consultora a abordou com a ideia, entusiasmou-se. O pai tinha um terreno disponível, em Almeirim, ela estava desempregada. “Não sabia nada sobre hidroponia nem de agricultura. Não sabia onde e a que preço iria vender a produção. A empresa que fez o projecto, vendeu-me a ideia como sendo uma agricultura de nova geração, fácil, mas com aceitação e valorização no mercado, escoamento garantido. Mostraram números que agradam a qualquer pessoa”, conta.
O financiamento do Programa de Desenvolvimento Rural (Proder), o instrumento financeiro aprovado pela Comissão Europeia para o período de 2007-2013, foi-lhe também apresentado como uma solução “chave na mão”. E, de facto, bastaram poucos meses para conseguir 50% de comparticipação, mediante factura, de um investimento global de 150 mil euros. Contudo, quase um ano depois, Marta Martins não consegue ainda tirar um ordenado para si. E, ao contrário do que lhe tinham dito, as alfaces que vende a dois intermediários não são valorizadas face às que são produzidas de forma convencional. “Disseram-me que o produto tinha muita aceitação no mercado, com escoamento garantido, mas a verdade é que tenho muito mais despesa e vendo ao mesmo preço”, admite, acrescentando que também falhou “a parte do escoamento”. Além disso, as experiências iniciais de cultivo tiveram “muitos azares pelo meio”. “Na primeira vez, perdi 21 mil alfaces por erro meu, porque não tinha conhecimento”, recorda.
Agricultores sem experiência e dificuldades de escoamento de produção são o reverso da medalha do regresso aos campos, fenómeno que ganhou espaço no discurso político e que, nos anos de crise, tem sido visto como uma alternativa à falta de trabalho. Entre 2009 e 2013, o número de novas empresas no sector disparou 100%, de 783 para 1569. E quase 25% dos projectos financiados pelo Proder são de jovens agricultores, num país que tem os produtores mais velhos da União Europeia (ver texto ao lado).
“Criámos uma imagem na população de que a agricultura é um oásis. Atraiu-se um conjunto de pessoas à terra que não têm condições financeiras, humanas, de solos, para serem agricultores. Mas como acharam que é o que está a dar, fazem os seus investimentos. É uma opção de cada um, mas mais grave é a análise e aprovação dos projectos para financiamento do Proder”, critica Domingos dos Santos, presidente da Federação Nacional das Organizações de Produtores de Frutas e Hortícolas (Fnop).
A esta organização têm chegado vários pedidos de ajuda. Há quem esteja a plantar culturas em terrenos impróprios, quem não faça as contas ao custo de transporte ou ainda quem venda a produção “a qualquer preço”. “Temos de voltar à terra, mas é preciso ser eficiente”, defende, acrescentando que na hora de disponibilizar fundos do Proder é preciso “dizer não”. “Se eu quiser plantar morangos no centro do País, onde estou distante de qualquer centro de comercialização, posso até ter o melhor solo do mundo, mas se tiver uma produção para 50 caixas, a logística vai-me comer os resultados. Isso tem de ser analisado ”, afirma.
Descida dos preços
Outro dos problemas que a viragem ao campo colocou é a descida de preços, impulsionada pelo aumento de produção. Segundo o INE, a superfície agrícola não utilizada caiu 20% face a 2009, apresentando o valor mais baixo desde que há registos estatísticos. Neste cenário de dinamismo, culturas como a dos mirtilos explodiram e o que antes era produto de nicho, proliferou, com a consequente queda de valor.
“Foi uma cultura interessante e era daqueles projectos chave na mão, todos iguais, e todos se faziam. As modas, como a dos mirtilos e das plantas aromáticas, são uma grande preocupação”, diz Ricardo Brito Pais, presidente da Associação de Jovens Agricultores de Portugal (AJAP).
O representante desta organização, fundada há 40 anos, partilha a mesma opinião de Domingos do Santos e diz que “há muitos projectistas [consultoras que elaboram as candidaturas] que querem apenas receber o dinheiro do projecto, já fizeram 20 candidaturas iguais e submetem novas sem estarem preocupados”. O acompanhamento técnico aos jovens agricultores é quase inexistente, contudo, há um apertado controlo e fiscalização depois de obtidos os incentivos comunitários. “Quando a entidade que gere o Proder aprova não vai ao terreno. Só lá vai depois fiscalizar. O importante é instalar jovens. Politicamente isso é positivo”, continua Ricardo Brito Pais. O presidente da AJAP frisa que é feito um estudo de viabilidade económica associado ao investimento. Mas sabe que “às vezes é preciso alterar alguns dados para que as contas sejam favoráveis” e, assim, conseguir luz verde na aprovação final. Os problemas surgem depois, quando a produção avança e não se conseguem atingir os objectivos.
“A AJAP tem defendido um acompanhamento técnico. O projectista tem de continuar a acompanhar o projecto e não deixar o agricultor sozinho. Neste novo quadro comunitário lutámos muitos para que seja diferente. Há alterações mas são escassas para as necessidades”, lamenta, defendo visitas mensais aos campos.
Em respostas enviadas por e-mail, fonte oficial do Ministério da Agricultura admite ter conhecimento de “casos de sucesso e alertas desse tipo de problemas”. A tutela confirma que o novo programa de desenvolvimento rural (PDR 2020) já introduz “algumas cautelas” para dar resposta às dificuldades relatadas. Uma delas são os incentivos aos jovens que pertencem a Organizações de Produtores (OP). “Assim, entrarão mais protegidos e com mais força no mercado, com acções de produção em conjunto e com estratégias comuns, com ganhos de eficiência e uma clara orientação para o mercado”, justifica. Foi também introduzido um “nível de co-responsabilização dos jovens no financiamento do projecto”. Finalmente, a formação e o aconselhamento junto das OP vão passar a ser condições necessárias ao financiamento.
Questionado sobre o acompanhamento dos projectos financiados que, só para os jovens agricultores, totalizou 650 milhões de euros, o ministério liderado por Assunção Cristas responde que o Proder obriga a uma formação de 24 meses no caso de produtores sem experiência. “Têm de apresentar um plano empresarial que contempla um comprovativo da parte de compradores que garantem o escoamento dos seus produtos. É também feita uma visita final ao projecto, onde se confirma a boa execução do seu plano empresarial”, continua a mesma fonte.
Marta Martins, a arquitecta que se virou para a agricultura depois de perder o emprego, não espera obter rendimentos tão cedo. “Há dias em que ficamos muito desiludidos, outros em que até gosto de andar aqui. Vi isto crescer, cada alface”, conta. Se não tivesse sido abordada pela consultora, que ficou com 3% dos 75 mil euros conseguidos pelo Proder, provavelmente, não estaria a gerir uma estufa de hidroponia.
Fonte: Público