Como é que o montado pode lutar contra as alterações climáticas?
Uma das imagens de marca do Alentejo é o montado, muitas vezes, adornado por sombras majestosas de sobreiros ou azinheiras. Mas esta paisagem pode ser afectada pelas alterações climáticas. Afinal, o montado é um ecossistema que domina nas zonas semiáridas, onde a água disponível para as plantas já é limitada, o que torna estas áreas vulneráveis à desertificação. Portanto, Alice Nunes – do Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais (cE3c) da Universidade de Lisboa – quis perceber o que estava a acontecer no montado e observou as funções desempenhadas pelas plantas. É com elas que pretende declarar guerra às alterações climáticas.
O que é ao certo o montado? O Livro Verde dos Montados (editado em 2013 pelo Instituto de Ciências Agrárias e Ambientais Mediterrâneas da Universidade de Évora) define-o assim: “Originalmente classificado como um sistema agro-silvo-pastoril e descrito como um sistema multifuncional onde se equilibram e conjugam as actividades agrícolas, pecuária e florestal, devido ao decréscimo de importância das culturas sobcoberto, o montado tende a ser considerado como um sistema silvo-pastoril.”
No Sul de Portugal, o montado tem mais de um milhão de hectares. E espalha-se por grande parte do Alentejo e por uma área significativa da Beira Baixa Interior e da serra algarvia. “Tratando-se de um sistema ecológico desenvolvido pelo homem, o montado foi sendo aperfeiçoado ao longo do tempo em Portugal, de modo a melhorar o aproveitamento e a rentabilização dos escassos recursos numa região caracterizada por um clima mediterrânico e solos pobres”, refere a mesma publicação, alertando que as árvores têm vindo a diminuir e não tem existido uma renovação.
Alice Nunes teve tudo isto em conta quando começou a sua “expedição” pelo montado alentejano na Primavera de 2012. Foi sobre ele que a investigadora decidiu fazer o doutoramento. A razão por ter escolhido o montado é simples: “Estes ecossistemas são emblemáticos em Portugal e importantes do ponto de vista cultural, estético, da paisagem, da resiliência das populações nessas áreas, da forma como as actividades lá se desenvolvem, assim como da sua adaptação ao clima ao longo dos séculos.”
Sobretudo devido à redução da chuva e de chuva mais intensa em períodos mais curtos, os montados enfrentam novos desafios. As actividades humanas e um clima árido também contribuem para o fenómeno de desertificação. Por isso, Alice Nunes quis compreender este ecossistema de forma a vir a adaptá-lo a estas ameaças.
Tudo começou ainda no gabinete da faculdade. “Começámos por fazer um desenho experimental [do trabalho] bastante rigoroso”, lembra. Começou por escolher zonas ocupadas por montados de azinheira – que não tivessem registo de ocorrência de fogos – e com o mesmo tipo de solo ou dentro de determinados valores de declive. Depois, seleccionou locais com diferentes níveis de aridez desde zonas semiáridas a zonas secas sub-húmidas. Por fim, Alice Nunes deixou o gabinete e partiu para o Alentejo com um receptor de GPS.
Armas contra a desertificação
No terreno, Alice Nunes encontrou agricultores e proprietários agro-florestais. “Faça lá o que têm a fazer. Diga se precisar de alguma coisa”, disse-lhe a maioria deles. E também se mostraram preocupados com a situação do montado no futuro. “Vão constatando que a precipitação é cada vez menor, que a qualidade das pastagens tem diminuído e que isso se reflecte na quantidade de alimento para o gado”, conta a investigadora. Ao todo, acabou por estudar 54 lugares desde Montemor-o-Novo até às zonas de Almodôvar e Ourique.
Alice Nunes tinha um objectivo bem definido: perceber o que acontecia à comunidade de plantas do montado. “Olhámos não só do ponto de vista do número de espécies que existem [no montado] ou da taxonomia das plantas como também observámos as funções que elas desempenham no ecossistema, que é um conceito que pode chamar-se ‘diversidade funcional’”, explica Alice Nunes.
Acabou por concluir que a diversidade funcional das plantas responde à aridez de forma mais consistente do que a diversidade das espécies por si só. E verificou ainda que a tal diversidade funcional das plantas diminui com o aumento da aridez e isso acontece de forma não linear. Ou seja, a partir de um certo nível de aridez e do uso que se faz da terra há um decréscimo ou desaparecimento dessas funções.
Ao saber isto, fica-se assim mais preparado para começar a combater as alterações climáticas no montado. Ou seja, para se ajustar o uso do solo e evitar a degradação do ecossistema.
Esta “estratégia de guerra” tem três passos. Primeiro, tem de se descobrir o tal padrão não linear de decréscimo da diversidade funcional para se mapear as zonas que têm maior risco de desertificação. Depois, adapta-se a forma de gestão do uso do solo às condições desses locais. Por fim, tem de se reverter essa degradação com acções de restauro. “Nessas acções de restauro são habitualmente introduzidas plantas através de sementeiras ou plantações”, refere a cientista. “Tendo em conta o que descobrimos, ou seja, percebendo as funções que vão desaparecendo com a degradação, também conseguimos saber quais são as espécies ou grupos funcionais mais importantes a inserir no restauro.”
Nesse tal restauro, vão então ser usadas plantas com determinados atributos funcionais (ou funções). No fundo, tem de se repor as funções que as plantas desempenham e que foram perdidas ou diminuídas no ecossistema. E quais as armas das plantas que podem ajudar a vencer a batalha contra a desertificação? Ao todo, foram estudadas nove. E, como em guerra não se pode revelar tudo, vejamos apenas alguns exemplos.
Uma dessas funções é a duração do período de floração. “Vimos que com o aumento da aridez há uma diminuição da duração da floração”, diz Alice Nunes. Então, se se introduzir espécies em que a duração da floração é maior, será possível repor funções no ecossistema.
Outra é a altura das espécies. “Observámos que com o aumento da aridez há uma uniformização da altura das espécies.” Por isso, no restauro, deverão introduzir-se espécies com diferentes alturas para que a diversidade das espécies e a complexidade da comunidade de plantas aumente.
Depois, há ainda as características das folhas, que resultam da capacidade das plantas se adaptarem às condições de aridez. “É preciso escolher para o restauro plantas com características nas folhas que permitam que elas consigam sobreviver e tenham um bom desempenho em condições de elevada aridez.”
A escolha de plantas com um sistema de raízes mais superficial e ramificado também pode ser uma vantagem quando há menos água disponível. Quando chove pouco, essas raízes mais superficiais e ramificadas conseguem absorver água. Além disso, quando há chuvas torrenciais podem reduzir a erosão do solo.
Ensinamentos dos agricultores
“Prevê-se que o aumento da aridez [provocada] pelas alterações climáticas venha a expandir-se para outras áreas e a acentuar-se”, avisa Alice Nunes. Este estudo pode ser assim uma ferramenta para os gestores de território. Como? “Não só nas acções de restauro e na introdução de espécies, mas também para perceberem que nível de intensidade e uso do solo é mais adequado para as condições que existem”, explica a investigadora. O desafio é fazer passar esta informação para associações florestais e de agricultores, proprietários agro-florestais, câmaras municipais ou qualquer outra entidade envolvida na gestão do território.
Se bem que, quando percorreu o montado, Alice Nunes aprendeu com os agricultores. Também eles enfrentam as alterações climáticos através das funções das plantas. Houve até um agricultor que partilhou a sua estratégia com a investigadora. Para que as plantas mais sensíveis à aridez não desapareçam, este agricultor regava pequenas áreas da sua pastagem para servirem de fonte de sementes para a restante propriedade. “Imaginemos uma ilha de vegetação onde se faz uma rega cuidada todos os Verões para garantir que essas espécies mais sensíveis à aridez não desapareçam mesmo que passem vários anos de seca ou alguns anos de seca”, descreve a cientista. Assim, este agricultor arranjou uma solução para garantir que todos os anos haja novas sementes destas espécies.
Alice Nunes já terminou há mais de um ano o doutoramento, que lhe valeu este ano o Prémio de Mérito de Doutoramento do Encontro Anual do cE3c e o 2.º lugar do Prémio de Doutoramento em Ecologia – Fundação Amadeu Dias de 2017, organizado pela Sociedade Portuguesa de Ecologia. E não tem deixado de fazer investigação sobre o montado. Actualmente faz parte do projecto europeu Desert-Adapt, que pretende preparar as áreas susceptíveis à desertificação para o aumento das alterações climáticas. Participa ainda no projecto ChangeTracker, que tem o objectivo de monitorizar as alterações climáticas com base em indicadores ecológicos em zonas áridas nos montados do Sul da Europa e na caatinga no Brasil.
“Os ecossistemas nas zonas semiáridas já estão no limite e são mais vulneráveis às alterações climáticas [do que os nas zonas húmidas]”, sublinha Alice Nunes. “Temos feito trabalho em zonas semiáridas em Portugal, temos vindo a assistir a um aumento da aridez e a estudar as suas consequências.”
Desde logo, há uma redução na produção de biomassa das plantas, o que afecta a cobertura da vegetação ou a produtividade das pastagens. “Com isto, há uma consequência socio-económica porque as pastagens produzem menos e conseguem alimentar menos gado”, refere. Outra das consequências é a mortalidade e a regeneração natural das árvores no montado. “Num cenário de maior aridez, a mortalidade de sobreiros e azinheiras que hoje já é preocupante pode aumentar”, alerta Alice Nunes, acrescentado que desta forma as árvores ficam mais vulneráveis a outros factores como doenças e pestes. “A regeneração natural – o renascer de novas árvores – que actualmente é muito baixa pode vir a ficar menor por causa da aridez. As plântulas de sobreiro e da azinheira são muito sensíveis a condições de falta de água, o que pode limitar mais a regeneração e até pôr em causa o futuro do montado enquanto ecossistema.”