E depois do fogo? Os efeitos dos incêndios
Numa altura em que várias zonas do país estão a ser fustigadas pelos incêndios e estes, à medida que vão sendo extintos deixam um rasto de destruição, achamos oportuno partilhar um artigo do Naturlink sobre o depois do fogo, os efeitos dos incêndios.
Os efeitos do fogo nas componentes biótica e abiótica dos ecossistemas podem ser drásticos, já que constituem uma ruptura dos ciclos e cadeias que deles fazem parte. A diversidade de respostas das espécies e comunidades atesta a variedade de efeitos.
A ocorrência de um incêndio tem toda uma série de efeitos que se verificam, quer na área ardida, quer em áreas próximas. A amplitude destes efeitos depende, em particular, da intensidade do incêndio o qual, por sua vez, depende dos fatores meteorológicos, do combustível que é queimado e do declive do terreno. Embora possam ser abordados separadamente, os diferentes efeitos causados pelos incêndios estão bastante interligados, devido às múltiplas relações funcionais próprias de qualquer ecossistema.
No solo, na água e no ar
Relativamente ao solo podemos considerar efeitos diretos, derivados da combustão da camada de detritos vegetais (folhada) e da matéria orgânica e efeitos indiretos derivados do desaparecimento do coberto vegetal. A combustão da matéria orgânica faz com que o solo fique temporariamente enriquecido em cinzas, ou seja, em nutrientes sob a forma mineral, os quais podem ser facilmente utilizados pelas plantas. Este processo está na base da utilização tradicional do fogo para fins agrícolas. É, no entanto, importante referir que, embora se verifique um aumento temporário de nutrientes disponíveis, o balanço global a médio/longo prazo é bastante negativo, já que enquanto não houver a reposição de uma parte significativa da matéria orgânica, não há possibilidade de restituir ao solo os nutrientes utilizados pelas novas plantas ou novos rebentos. Por outro lado, com as primeiras chuvas pode verificar-se o arrastamento superficial dos nutrientes sob a forma mineral, assim como o seu arrastamento em profundidade até níveis fora do alcance das plantas, o que também contribui para afetar negativamente a fertilidade do solo.
De um modo geral, a capacidade de retenção e de infiltração de água no solo pode ficar reduzida. Por um lado a diminuição do teor de matéria orgânica faz com que exista uma menor agregação entre as partículas do solo e, consequentemente, uma menor porosidade. Por outro lado a ocorrência de incêndios de grande intensidade faz com que se forme uma camada com propriedades hidrófobas, o que contribui para reduzir ainda mais a capacidade de retenção e de infiltração de água. A redução da infiltração da água das chuvas leva a um aumento do escoamento à superfície do solo o que, por sua vez, pode conduzir ao aparecimento de fenómenos de erosão. A erosão do solo será tanto maior quanto maior for o declive e quanto mais exposto ficar o solo após o incêndio.
Os mecanismos referidos, juntamente com a maior evaporação das camadas superficiais, contribuem, à partida, para uma diminuição da húmidade no solo e para diminuir a alimentação dos lençóis de água subterrâneos. No entanto, a queima da vegetação tem também um efeito contrário, na medida em que desaparece a grande superfície de folhas, através das quais a água é reenviada para a atmosfera por transpiração. De acordo com estudos recentes realizados em Portugal, o aumento de água armazenada no solo durante o Verão, devido à eliminação da transpiração das plantas pelo fogo, pode ultrapassar os 100 litros por metro quadrado.
Um dos efeitos diretos de um incêndio é a produção de gases derivados da combustão. Muito embora a composição desses gases seja relativamente complexa, eles são sobretudo compostos por vapor de água e por dióxido de carbono (CO2). Este efeito dos incêndios na atmosfera ganhou recentemente uma importância acrescida, em virtude do aquecimento global do planeta como consequência da elevada produção de CO2. A contribuição dos incêndios para o aumento dos níveis de CO2 na atmosfera é enorme, não só devido a incêndios naturais ou acidentais, mas também em boa parte devido a práticas tradicionais com fins agrícolas e pastoris, que se verificam ainda um pouco por todo o Mundo. Interessa ainda referir que um incêndio implica a perda, para a atmosfera, de quantidades consideráveis de azoto, o que tem um impacto importante do ponto de vista da nutrição das plantas.
Nas plantas
O efeito mais drástico que uma comunidade vegetal pode sofrer após a ocorrência de um incêndio é a morte imediata de todas as plantas. No entanto, dificilmente assim acontece, já que a mortalidade diretamente provocada pelo incêndio normalmente não atinge todas as plantas e numa comunidade vegetal existem quase sempre espécies que voltam a lançar rebentos após a passagem do fogo. Por outro lado, no caso das árvores, nem sempre o fogo atinge as copas e, mesmo quando tal aconteça, os danos causados nem sempre implicam a cessação das suas funções vitais.
Esta cessação pode acontecer devido a dois tipo de mecanismos válidos para qualquer planta: a cessação permanente ou temporária da fotossíntese, devido à destruição das folhas, e o bloqueio do processo de transporte da seiva elaborada, devido à morte dos tecidos vivos do caule (em particular o câmbio e o floema). Tanto num caso como noutro há que ter em conta não apenas o aumento da temperatura, mas também a duração do aquecimento. Deste modo, quanto maior for a temperatura menor é o tempo necessário para provocar a morte dos tecidos em questão. Por outro lado, diferentes espécies possuem diferentes tipos de proteção ao nível dos vários órgãos. Por exemplo, em relação aos tecidos vivos do tronco das plantas lenhosas, a sua resistência ao fogo depende bastante da espessura e da natureza da casca. Por sua vez, as características da casca da árvore estão bastante dependentes da espécie e do seu estado de desenvolvimento.
Dentro da mesma espécie, as árvores mais velhas são normalmente menos danificadas pela passagem do fogo, não só devido à maior espessura da casca, mas também devido à maior altura a que se encontram os ramos mais baixos. Por outro lado, as árvores mais jovens têm normalmente maior capacidade de recuperação relativamente aos danos sofridos. Em estudos realizados em pinheiros bravos com 10 anos de idade, as árvores conseguiram recuperar após taxas de desfoliação da ordem dos 75%. Um caso notável é, sem dúvida, o do sobreiro, o qual apresenta uma resistência ao fogo verdadeiramente excepcional; devido ao efeito isolante da cortiça, os tecidos vivos do tronco conseguem resistir ao calor e desta forma contribuir para a regeneração da copa queimada.
De entre as árvores e arbustos sobreviventes a um incêndio, uma certa percentagem nunca chega a recuperar por completo e existe normalmente uma diminuição no crescimento, quer devido à diminuição da fotossíntese, quer devido aos danos causados nos tecidos do tronco. Em todo o caso, muitas das plantas mais afetadas acabam, a médio prazo, por sucumbir ao ataque de pragas e doenças, como resultado do enfraquecimento das suas defesas naturais.
Nos animais
De um modo geral, os efeitos indiretos do fogo sobre as populações animais que vivem na dependência de uma determinada comunidade vegetal, que de repente deixa de existir, são bastante mais importantes que a mortalidade diretamente provocada pelo fogo. Em relação à fauna do solo verifica-se, em geral, uma diminuição importante das populações das diferentes espécies que habitam nas camadas mais superficiais do solo e da manta morta. Outros grupos de insetos, como as formigas, podem, pelo contrário, ver aumentada a diversidade de espécies existente, devido à capacidade que algumas têm para colonizar o novo meio. É igualmente esta capacidade para colonizar um novo meio que leva ao aumento de algumas pragas florestais.
Este aumento das populações de insetos pode levar ao aumento da população de pica-paus e de outras aves insetívoras, como as toutinegras. Após um incêndio, as árvores mortas podem igualmente constituir locais excelentes, não só para a alimentação, mas também para a nidificação de diversas espécies de aves, tais como os chapins. Da mesma forma, a criação de espaços abertos com vegetação rasteira pode beneficiar as aves que vivem no solo, como as perdizes ou as codornizes. Pelo contrário, as espécies de aves que dependem da existência de folhas e ramos para a nidificação e alimentação são normalmente prejudicadas, sobretudo durante os primeiros anos, até à recolonização da área pela vegetação.
Em relação aos mamíferos, os efeitos de um incêndio podem igualmente variar, dependendo bastante da intensidade do fogo e da área queimada. É comum a utilização de fogo controlado em pequenas manchas, como forma de melhorar as condições de pastoreio dos veados, dada a maior diversidade de vegetação e a disponibilidade de tecidos mais tenros nas novas plantas e rebentos. No entanto, em incêndios de grande intensidade e de grande extensão, os efeitos podem ser altamente negativos sobre estas espécies, dada a repentina ausência de abrigo e de alimentação. Este tipo de efeito é bastante mais importante do que a mortalidade direta, dado que uma grande parte dos animais consegue fugir às chamas ou refugiar-se em tocas abaixo da superfície.
Ao nível do ecossistema
Em jeito de síntese, podemos referir que, de um modo geral, os efeitos dos incêndios ao nível dos ecossistemas são bastante importantes, dado constituírem uma brusca ruptura dos diversos ciclos e cadeias que dele fazem parte. Apesar do fogo ser parte integrante do ciclo natural das regiões Mediterrâneas, a recuperação após um incêndio pode demorar muito tempo, sobretudo se os sistemas afetados são o resultado de muitos anos de evolução. Em todo o caso, tal depende do sistema afetado, sendo certo que uma floresta de carvalhos levará, inevitavelmente, muito mais tempo a recuperar do que uma pastagem ou um mato rasteiro. Na medida em que a frequência dos incêndios é atualmente bastante superior à que se verificava naturalmente, os seus efeitos tornam-se, como tal, tanto mais graves quanto mais tempo for necessário para repor a situação anterior.
Fonte: Naturlink (Joaquim Sande Silva, Escola Superior Agrária de Coimbra)