publicado a: 2020-01-30

Na região do Alqueva já não há mosquitos esmagados contra os pára-brisas

Inúmeras espécies de aves, répteis, anfíbios e peixes comem insectos. Se esta fonte de alimento desaparecer, como já está a acontecer, morrerão de fome e o impacto nos ecossistemas será dramático.

Se houvesse dúvidas sobre o impacto das monoculturas intensivas e superintensivas na biodiversidade do Alentejo irrigado por Alqueva, Domingos Borralho, reformado e natural de Serpa, desfê-las com uma simples e óbvia observação: “Até deixámos de ter mosquitos nos pára-brisas dos carros.” Na concentração que o PCP realizou no passado sábado junto à Barragem do Enxoé sobre estas culturas, e depois de outros lavrarem o seu protesto contra a proliferação de olival e amendoal, pediu para deixar o seu testemunho. E recordou como, há meia dúzia de anos, conduzir à noite no interior alentejano deixava os vidros dos carros pejados do mais variado tipo de insectos. O PÚBLICO perguntou a vários dos presentes se confirmavam a constatação de Domingos Borralho e foram unânimes as expressões de concordância.

Para o senso comum, o que antes era um incómodo, sobretudo nas noites de Verão, é agora uma preocupação ambiental que se estende a outras zonas do globo. No mesmo meridiano, de Greenwich mas mais a norte, no Reino Unido, o professor Dave Goulson, da Universidade de Sussex, no comentário que fez ao jornal inglês The Guardian sobre a drástica redução de insectos, disse que já tinha chegado à mesma conclusão em 2018. No Verão daquele ano percorreu o território francês na expectativa de que os vidros da sua viatura ficassem cobertos de insectos por todo o lado. “Curiosamente, nunca tive que parar para os limpar”, disse Goulson, frisando que se trata de um exemplo concreto, “mesmo que anedótico, do desequilíbrio ambiental que se deve à intensificação de práticas agrícolas”.

Outro investigador no Departamento de Ciências Vegetais e Alimentares da Universidade de Sydney, na Austrália, Francisco Sánchez-Bayo confirmou ao diário inglês que “a principal causa do declínio dos insectos reside na eliminação de todas as árvores e arbustos” para que fiquem ao dispor de uma agricultura industrial “campos nus tratados com fertilizantes sintéticos e pesticidas”. O seu desaparecimento parece ter começado no início do século XX, para se acelerar nas décadas de 1950 e 1960 e atingir “proporções alarmantes” nas últimas duas décadas, assinala.

O mundo científico tem realçado a importância que os insectos voadores têm nas funções ecológicas: moscas, mariposas e borboletas são tão importantes quanto as abelhas para muitas plantas com flor, incluindo algumas culturas. Fornecem alimento para muitas espécies de pássaros, morcegos, alguns mamíferos, peixes, répteis e anfíbios, e também são predadores e decompositores, controlando pragas e assegurando o equilíbrio ambiental.

Uma análise publicada na revista internacional Biological Conservation, dedicada às ciências da conservação, descreve como a agricultura intensiva, através do uso maciço de pesticidas, “é a principal causa do desaparecimento dos insectos” e, por consequência, do alimento de muitas espécies. “Se essa fonte de alimento for retirada, todos esses animais morrerão de fome”, acrescenta Sánchez-Bayo.

Já não temos flores”

O cidadão de Serpa descreve o impacto da nova realidade agrícola e paisagística no espaço rural onde vive: “Já não temos as flores do campo e até os animais se vão embora por não terem onde se alimentar. Os caçadores deixaram de ter caça e já não vêm. Qualquer dia desaparecemos nós.”

João Dias, do PCP, reforçou a preocupação de Domingos Borralho, dando conta que “todos os dias saem uma média de quatro pessoas para fora da região” e que os pequenos agricultores “abandonam as suas terras, alimentando desta forma a concentração fundiária” e o aumento das áreas afectas às culturas intensivas. “Todos os dias assistimos ao aparecimento de mais plantações de olival” e à “transfiguração radical da paisagem do Alentejo com efeitos dramáticos na vida das pessoas, que perderam qualidade de vida”, denunciou o deputado comunista.

O vice-presidente das Câmara de Serpa, Carlos Alves, vincou, junto à Barragem do Enxoé, que “as preocupações da população são as preocupações da câmara”. O autarca lamentou que as normas que o município aprovou para protecção dos cidadãos, com a criação de uma faixa de protecção de 500 metros junto dos aglomerados urbanos onde não deviam ser plantadas culturas intensivas e superintensivas, “não [estejam] a ser cumpridas”. Há olivais plantados “praticamente dentro de localidades” de Serpa. Também as populações das aldeias de Beja, Ferreira do Alentejo e Aljustrel se queixam de situações análogas. “Até o Plano de Ordenamento da Barragem do Enxoé [em Vale de Vargo] já está a ser violado”, acentuou o autarca.

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