publicado a: 2020-01-06

No Algarve, as alfarrobeiras dão fruto em Dezembro como se fosse Verão

Nos centros de experimentação agrária algarvios, as plantas já reagem ao clima em mudança. Nesta direcção regional de Agricultura está a maior colecção de árvores de fruto do país — cerca de mil variedades — mas o património vegetal corre o risco de desaparecer por falta de recursos humanos.

As alfarrobas não se medem aos palmos mas torna-se irresistível não comparar o fruto com o tamanho da mão. “Onde é que já se viu isto, em finais de Dezembro?”, pergunta João Costa, intrigado. O fenómeno de crescimento exagerado dos frutos secos fora de época pode ser observado no Centro de Experimentação Agrária de Tavira. O agrónomo, em vésperas de partir para reforma, mostra a maior colecção do país em árvores de fruto – cerca de mil variedades - a cargo da Direcção Regional de Agricultura do Algarve. Só de alfarrobeiras existem 43 espécies, sem contar com mais de 300 variedades de citrinos. Um património em risco de desaparecer por falta de pessoal e interesses imobiliários.

As alterações climáticas trocaram as voltas às estações do ano. As alfarrobeiras apresentam-se num estado vegetativo que faz lembrar o mês de Julho. As amendoeiras, a indiciar um florir precoce, vão pelo mesmo caminho. Mudaram-se os tempos, mas as políticas agrícolas repetem os modelos do passado. O Algarve, uma região cada vez mais árida, assiste todos os dias a uma acentuada perda de biodiversidade. “Recuperámos centenas de variedades de árvores de fruto em risco de se perderem”, destaca o director regional de Agricultura do Algarve, Pedro Monteiro, lembrando que as raças de animais autóctones – a vaca, cabra e a ovelha churra - também estão ameaçadas. “Só temos sete exemplares da vaca algarvia”, exemplifica.

O Ministério da Agricultura, na região algarvia – tal como no resto do país –, está a perder o contacto com as pessoas que metem as mãos na terra. “Vou partir”, diz João Costa, a acariciar as folhas de uma alfarrobeira, carregada de frutos. As árvores não falam, mas parecem ouvir as palavras do agrónomo, num adeus sem gestos. “Hei-de cá voltar”, promete, deixando cair umas gotas de saudade. Os colegas, António Marreiros e José Tomás, reconhecem-lhe a “carolice e a paixão” com que se entregou, há cerca de 12 anos, a esta causa – a recolha de espécies autóctones, muitas delas em vias de extinção. Gostaria de ter “feito escola”, confidencia. Mas dificilmente vai ter seguidores. “O Armindo Rosa [colega] vai, também, meter os papéis para a reforma”, anuncia. Está a chegar ao fim uma geração que viu nascer os Centros de Experimentação Agrária, numa altura em que o Ministério da Agricultura apostou na descentralização para valorizar a identidade de cada região.

João Costa foi um dos engenheiros que percorreu o Algarve, de uma ponta a outra, durante mais um de uma dezena de anos, como se fosse um detective a sacar amostras mais ou menos ocultas. “Recolhemos o material, seleccionamos, e aqui [no Centro Experimentação] criámos a maior colecção das fruteiras do tipo mediterrânico – romãzeiras, alfarrobeiras, amendoeiras, e figueiras”. Sobre a “espionagem”, admite que teve cúmplices no terreno. Os produtores, acrescenta, ajudaram na recolha, identificação e contribuíram com a informação de que dispunham para formar a colecção. Por isso, em homenagem a essa colaboração, as variedades foram baptizadas com o nome dos agricultores ou adquiriram o nome dos sítios donde são originárias. Assim, no centro de Tavira pode-se encontrar a “preta de Lagos” (alfarrobeira), a “bonita de São Brás (amendoeira), ou, a alfarrobeira “Manel Bento”, que faz sombra às congéneres.

Cada árvore tem a sua história e um percurso de vida para ali chegar, feito ao longo dos séculos, sobrevivendo a várias alterações climáticas. “Temos aqui um importante património genético”, destaca António Marreiros, lembrando que, por coincidência, Tavira é a comunidade representativa da Dieta Mediterrânica, Património Cultural Imaterial da UNESCO. O Centro de Experimentação Agrária, exemplifica, chegou a ter mais de duas dezenas de pessoas ali a trabalhar. A equipa actual está reduzida a três funcionários e dois estão de baixa médica. Situação idêntica verifica-se no Centro de Experimentação do Patacão, onde se encontra uma colecção considera “única no país”, com cerca de 300 variedades de citrinos. O passo seguinte, acrescenta, é disponibilizar os exemplares aos agricultores.

A morte anunciada

No concelho de Silves, na herdade do Paúl, com 153 hectares, também existiu um Centro de Experimentação Agrária. Em 2007, com Jaime Silva à frente do Ministério da Agricultura, veio ordem de Lisboa para encerrar o centro vocacionado para a promoção e valorização da criação de raças autóctones - a ovelha churra algarvia, por exemplo – mas, também, a produção de mel e queijo. Os engenheiros regressaram aos gabinetes e as saídas para o campo passaram a ser cada vez mais raras. No passado recente, o grande incêndio de Monchique/Silves acelerou a desertificação de uma vasta área e o meio rural está cada vez mais vulnerável.

Por ouro lado, no Patacão (Faro), onde se situa a sede da Direcção Regional de Agricultura (DRA), faz-se cada vez menos investigação. “Só mesmo por carolice e uma forte vontade da DRA é que estes projectos [agricultura experimental] se mantêm”, sublinha João Costa, de regresso à horta, em Tavira. “Vou ter que cá voltar [mesmo depois de reformado] para ver se elas [as alfarrobeiras] se vão aguentar”, repete. O sistema de rega da exploração, com 30 anos de idade, volta não volta está sujeito a rupturas, e falta pessoal em todas as áreas. Regressa-se ao início: os projectos são criados mas não chegam ao fim e perde-se o investimento.

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