Os cravos de Abril estão a morrer nas estufas porque ninguém os encomenda
As flores símbolo da Revolução de Abril estão murchas, a morrer nas estufas, por falta de procura. Haverá melhor imagem para aquilo que está a acontecer à nossa liberdade?
Se não fosse o “bicho”, por estes dias, a azáfama na Florineve seria tanta, que provavelmente nem haveria tempo para receber jornalistas. Estariam a ser despachados qualquer coisa como 100 mil pés de cravos vermelhos, metade deles chegados de Espanha para fazer face aos pedidos de câmaras municipais, juntas de freguesia e floristas. A nível nacional, e em celebração, seriam vendidos à volta de um milhão, para andarem ora na lapela, ora em punho, em jeito de símbolo da revolução e da liberdade.
Mas como o “bicho” ainda anda por cá, metade dos funcionários da Florineve está agora em layoff, as encomendas são apenas 10 a 15% do que o normal para esta época e todos os dias se deitam flores para o lixo. Camiões delas, e não é apenas uma força de expressão. Com muitas floristas de porta fechada e as verdadeiras celebrações do 25 de Abril adiadas para o ano que vem, os cravos vermelhos ficam confinados apenas às jarras de algumas casas. E às lapelas de quem os quiser ostentar, apesar de tudo.
Mete dó entrar nas enormes estufas da região do Montijo – a capital da flor, note-se – e ver os cravos, de todas as cores, não só os vermelhos, a murcharem, a morrerem e a serem incorporados pela terra que os alimentou até agora. “Neste setor, o mais afetado da agricultura, não dá para parar a produção, pois assim quebrar-se-ia o ciclo da flor e não conseguiríamos dar resposta quando o mercado voltasse a funcionar”, explica Victor Araújo, 53 anos, dono da Florineve, com mais de duas décadas de história, 30 hectares de estufas, 120 colaboradores e 400 mil euros de faturação mensal.
Além de gerir esta empresa, Victor e a sua mulher Anabela têm a Flores no Cais, com duas lojas em centros comerciais, que estão fechadas – funcionam online, com entregas em todo o País em 24 horas. E ainda é presidente da Associação Portuguesa de Produtores de Plantas e Flores Ornamentais, com 400 sócios que correspondem a 80% dos produtores nacionais. É por isso que tem a noção de que vão para o lixo, em todo o País, mais de dois milhões de euros por dia em flores e plantas, desde que isto começou.
Prejuízo todos os dias
Aqui, na Florineve, dos três hectares de cravos, metade vai para abate, porque não há quem os compre. Isso significa retirar os ferros e as redes que suportam a flor para que fique esticada e bonita para deixá-la morrer e tornar-se matéria orgânica. À área que resta, outro hectare e meio, há que ir, uma a duas vezes por semana, para colher as flores. Guardam-nas, depois, no armazém durante oito dias. O que não se vende durante esse armazenamento, é transportado na traseira de um camião de caixa aberta, como se tratasse de despojos de guerra recolhidos pela rua depois de um ataque aéreo – rumo ao lixo. “Temos prejuízo todos os dias”, lamenta Victor Araújo, com ar agastado por estes contratempos inesperados.
Neste momento, há cerca de 50 baldes no armazém, qualquer coisa como 10 mil pés, muitos cravos vermelhos à espera de encomendas de última hora para celebrar a Liberdade nem que seja à janela, mas também de outras cores, preenchendo o espaço com um variado pantone e um aroma adocicado.
A um canto, Victor arrumou os 2 mil pés que cravos brancos (símbolo da esperança), que serão distribuídos no Hospital Santa Maria, em Lisboa, às três da tarde de 25 de Abril, numa iniciativa dos alunos da cadeira de Design para a Inovação Social da Universidade de Aveiro. Filipe Silva, um dos organizadores, conta que a ideia surgiu depois de saberem do desperdício diário deste setor e de como poderiam “traduzir as flores em estima e carinho pelos profissionais de saúde”. Victor disponibilizou os cravos e o transporte até ao Santa Maria, para que médicos, enfermeiros e auxiliares possam recebê-los na sua mudança de turno, neste dia especial. “Gostávamos de oferecer mais flores noutros hospitais, em vez de as termos a simplesmente a morrer nas estufas”, lembra Victor.
Este empresário também tem esperança de que as pessoas comecem a dar mais valor a uma casa florida, especialmente em tempos de confinamento, pois os benefícios desse embelezamento na saúde mental estão comprovados, nem que seja pela cor que dá a uma sala. “No Dia da Mãe, por exemplo, na impossibilidade de abraços, podíamos passar a mensagem de carinho e esperança através das flores”, sugere, aludindo a outra data importante que se aproxima e em que o negócio costumava disparar. E porque não assinalar o fim do Estado de Emergência, previsto para a mesma altura, fazendo chegar ramos de celebração da vida a quem mais nos tem feito falta nesta quarentena generalizada?