Ovos esmagados, cebolas enterradas e colheitas sem trabalhadores: exemplos da desgraça do setor
Os restaurantes fecharam e as escolas fecharam. Os mercados locais não garantem as distâncias de segurança e também fecharam. Por todo o mundo, a cadeia de abastecimento de alguns bens essenciais como leite e ovos está a sofrer, e muito, com o impacto da paragem generalizada dos serviços. Para piorar, com as fronteiras fechadas é difícil encontrar trabalhadores para as colheitas que agora começam.
Há milhões de toneladas de produtos alimentares que é impossível escoar, mesmo que os supermercados continuem a vender. O leite, por exemplo, que era comprado em massa por centenas de cadeias de cafés "para levar", escolas, restaurantes e hotéis, está a vender-se muito menos.
A maior cooperativa de produtores de leite nos Estados Unidos já lançou o aviso: sem ajuda milhares de famílias que vivem da produção e venda de leite vão sofrer consequências muito sérias com esta crise. Segundo a associação Dairy Farmers of America, estima-se que os produtores estejam a deitar fora, por dia, cerca de 14 milhões de litros de leite, a maior rutura da rede de postos de venda de que há memória no país. As queixas ecoam em muitos outros países da Europa, nomeadamente no Reino Unido, Irlanda e França, todos tradicionais produtores de leite.
A página de notícias dos sectores agrícola e agropecuário Agronews, onde muitas das notícias sobre estes ramos de atividade na Europa se concentram, escreve que as associações de produtores de leite de Espanha, França e Alemanha já pediram medidas de redução de produção em todos os países, para evitar um total colapso de preços e a alienação de milhões de litros de leite. É que os queijos, exportados para mercados gastronómicos, hotéis, lojas de produtos locais e restaurantes, também não estão a manter a procura.
Com os ovos o procedimento não é muito diferente - e com algumas verduras também não. O “New York Times” falou com vários agricultores que estão a destruir uma parte do que produzem. Os exemplos chegam de todo o país: um agricultor do Idaho cavou valas enormes para enterrar meia tonelada de cebolas, um outro no sul da Flórida passou com os tratores por cima das culturas de feijão e couve, devolvendo à terra comida pronta a ir para as prateleiras, apenas um dos produtores de ovos contactados pelo jornal tinha destruído 750 mil ovos naquela semana, um procedimento que terá de repetir.
Apesar de quase não existirem focos graves da doença no sul de Itália é ali que se produzem alguns dos melhores vegetais do mundo, o mesmo se pode em relação à fruta, ao pão, ao vinho e ao peixe. A desgraça não é sanitária, mas pode representar a pobreza para milhões de pessoas se as linhas de abastecimento para o norte e para o resto do mundo não voltarem a abrir depressa. Uma história do jornal italiano “Il Sole 24 Ore” mostra bem que a situação é insustentável.
Luigi Nola, diretor da empresa de produtos agrícolas F.Lli Nola & C, com sede na Calábria, disse ao jornal que produz cerca de sete mil toneladas de fruta por ano, dos quais 70% se destinam à exportação. "As medidas de apoio do governo não se podem cingir apenas às áreas vermelhas da infeção, porque na Calábria, embora a doença mal tenha cá chegado, os danos já são evidentes. Toda a produção do sul da Itália é comercializada no norte através de plataformas que vendem no norte da Itália e no exterior. Se eles desaceleraram ou pararem, todo o mercado paga as consequências".
Os menos otimistas dizem mesmo que a União Europeia corre o sério risco de perder a auto-suficiência alimentar este ano, bem como o seu papel como principal exportadora mundial de alimentos (138 biliões de euros de faturação, com um superávit comercial no sector agroalimentar de 22 biliões são as contas do suplemento de Economia do “Corriere della Sera”). Segundo a maior associação de agricultores italianos, a Coldiretti, as cadeias de alimentos podem mesmo vir a ceder sob o peso da procura se a UE não accionar “via verde” para produtos e trabalhadores sazonais que possam apanhar as frutas e legumes que estão a entrar na fase da colheita.
A Comissão Europeia já pediu aos 27 membros que tomem medidas para garantir isso mesmo. Norbert Lins, presidente da Comissão de Agricultura do Parlamento Europeu, citado pelo mesmo jornal, defende que “as vias verdes também devem ser aplicadas a outros produtos, como alimentos para animais, fertilizantes e produtos farmacêuticos”. Da mesma forma, “os Estados-Membros precisam de encontrar formas de permitir algum tipo de movimento transfronteiriço para trabalhadores sazonais durante a época alta de colheitas, mesmo que ainda existam restrições de viagem”.
Em Itália, mais de um quarto do que é produzido no país para fins alimentares é colhido por mãos estrangeiras: de acordo com Coldiretti, 370 mil trabalhadores chegam todos os anos a Itália. Em França, por outro lado, devido ao coronavírus, existem 200.000 trabalhadores sazonais entre romenos, polacos, tunisinos e marroquinos que este ano não vão poder trabalhar no país tanto que a França, tal como a Alemanha (e em Portugal esse plano também existe, escreve o “Público”) estão a pedir que as pessoas colocadas em lay off ou que tenham perdido os seus empregos se inscrevam para ajudar o sector. Na Alemanha, que já criou uma plataforma online para que as pessoas sem ocupação atual possam mostrar disponibilidade para as colheitas, há 300.000 trabalhadores sazonais.
EM ÁFRICA, O MESMO CENÁRIO
No Quénia, um importante fornecedor de feijão verde e ervilhas, metade dos trabalhadores do sector foi mandada para casa, revela a agência Reuters, devido à incapacidade do sector em processar os pedidos, isto mesmo que a procura na Europa, onde chega muita dessa produção, não tenham abrandado. "As reservas na Europa estão a diminuir”, disse à Reuters Okisegere Ojepat, diretor do Consórcio de Produtos Frescos do Quénia, que reúne mais de 200 produtores e exportadores. O mesmo se passa na África do Sul: "Estávamos em boa forma até o início desta semana, mas agora as coisas vão ficar muito difíceis", explicou Hans Muylaert-Gelein, presidente executivo da Fruits Unlimited, uma empresa sul-africana que exporta frutas e legumes para o Reino Unido. Mesmo que os produtos estejam lá, fica cada vez mais complicado levá-los até à Europa - os voos são poucos e o transporte está a tornar-se demasiado oneroso para as empresas.