"Por detrás do desperdício alimentar estão muitas famílias a passar necessidades"
Em 2016, França proibiu que os supermercados deitassem fora comida, sendo obrigados a doá-la a instituições de solidariedade social e bancos alimentares. Inês Sousa-Real, líder parlamentar do PAN, defende que Portugal deve seguir o exemplo. Já Isabel Jonet, do Banco Alimentar Contra a Fome, discorda da estratégia da obrigatoriedade. À Renascença, Maria do Céu Albuquerque, ministra da Agricultura, revela que está a ser preparada uma plataforma para ligar “produtores de excedentes alimentares e aqueles que necessitam deles” – ideia que consta do projeto de lei do PAN.
A consciência dos portugueses - não de todos, mas ainda assim da maioria - devia pesar, em média, 100 quilos: o volume de bens alimentares desperdiçados anualmente por cada cidadão, segundo dados de 2018.
“Cem quilos de alimento são imenso. Nós não podemos continuar a fazer isso”, assume em declarações à Renascença, a ministra da Agricultura, Maria do Céu Albuquerque.
Acontece que, em tempos de pandemia, porventura, este peso devia ser ainda maior, porque falar de desperdício alimentar é também falar de pobreza e fome. “Dos milhões de toneladas de desperdício que nós temos no mundo, em Portugal, muitos podiam estar a contribuir para matar a fome a muita gente”, diz Mercês Ferreira, engenheira do ambiente especialista em gestão de resíduos e membro do Fórum da Energia e Clima.
Se, por um lado, a pandemia pode “despertar consciências”, por outro “estamos limitados a vários níveis, não tem sido o momento mais fácil de agir”. Enquanto isso, Portugal encontra-se numa posição singular: estima-se que um milhão de toneladas de alimentos acabe todos os anos no lixo - o que daria para alimentar cerca de 360 mil pessoas em situação de carência, de acordo com o movimento Unidos Contra o Desperdício.
Mas este número - por mais gravoso que seja - não muda hábitos. É isso que dita a experiência de Isabel Jonet, presidente da Federação Portuguesa dos Bancos Alimentares Contra a Fome: “A sensibilização para o desperdício alimentar tem ainda um longo caminho a percorrer na sociedade portuguesa, porque ela é transversal a todos os setores.”
Ora, em sociedade, há mudanças orgânicas e há respostas que só ocorrem por força legislativa. No campo do desperdício alimentar, a segunda hipótese parece ser aquela que está a ter mais sucesso ao nível europeu.
Em 2016, França tomou as rédeas do problema do desperdício alimentar e proibiu que os supermercados (com áreas superiores a 400 metros quadrados) deitassem fora comida que não fosse vendida ou perto do fim do prazo de validade, sendo obrigados a doá-la a instituições de solidariedade social e bancos alimentares; os estabelecimentos que não cumpram têm de pagar uma multa no valor mínimo de 10 mil euros.
O sucesso da medida em França reflete-se nos números: o volume de bens alimentícios doados quase triplicou em menos de três anos; passou de 39 mil toneladas em 2015 para 113 mil toneladas em 2018. (Ainda assim, o volume está aquém das expectativas iniciais e há relatos que algumas empresas adotaram políticas internas de forma a contornar a lei.)
“Em termos concretos, a lei contra o desperdício alimentar permitiu a distribuição de mais de 10 milhões de refeições por ano a instituições de solidariedade social. Isto representa um aumento de mais de 22% nas doações de alimentos às associações”, conta à Renascença Arash Derambarsh, o promotor da iniciativa legislativa – que começou com uma petição - em França. O advogado lembra que a mesma lei recebeu o selo de aprovação da ONU, em 2018. Questionado se foi contactado por algum representante político português, diz que “não”, mas acrescenta que espera ser muito “em breve”.
O caso português
No ano passado, a mesma ideia que brotou em França, foi transplantada, quase ipsis verbis, para Portugal pelo Partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) com o Projeto de Lei n.º 487/XIV/1.ª. “Propomos que as empresas do sector agroalimentar com uma área de venda ao público com dimensão igual ou superior a 400m2 e as cantinas públicas passem a ter o dever legal de doar os géneros alimentícios que, não sendo suscetíveis de prejudicar a saúde do consumidor, tenham perdido a sua condição de comercialização”, lê-se no diploma que está, neste momento, na Comissão de Agricultura e Mar.
À Renascença, Inês Sousa-Real, líder parlamentar do PAN, reitera que “não faz sentido que, anualmente, milhares de toneladas de alimentos, ao nível global, não apenas em Portugal, estejam a ir para o lixo, alimentos que estão em perfeitas condições de consumo, quando temos pessoas as passar fome”. “Acreditamos que, agilizando e harmonizando aquilo que são os interesses quer dos privados, quer do próprio setor social, vamos conseguir ter aqui um passo civilizacional naquilo que é combater o desperdício alimentar, porque detrás do desperdício alimentar também estão muitas famílias e muitas pessoas a passar necessidades”, afirma.
A iniciativa do PAN visa a obrigatoriedade, "mas não está dissociada daquilo que podem ser depois os sistemas de incentivos [fiscais], dedução das despesas inerentes a quem, no fundo, presta este serviço público”.
Com o intuito de permitir uma adaptação das empresas, o PAN propõe que o Governo crie “um sistema de incentivos à adaptação das empresas à nova obrigação legal” e que assegure, pelo menos, a disponibilização gratuita de embalagens 100% biodegradáveis para as refeições prontas a consumir – uma medida defendida pela Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRSP) como forma de incentivar as empresas a realizar doações dos seus excedentes alimentares.
O PAN sugere ainda “um aprofundamento do atual quadro de incentivos fiscais à doação de alimentos por via da previsão em sede do Código do IRC de uma regra que assegura que os donativos de géneros alimentícios feito ao abrigo do enquadramento legal proposto são, na sua totalidade, considerados custos ou perdas do exercício em valor correspondente a 150% do respetivo total, até ao limite de 50/1000 do volume de vendas ou dos serviços prestados”.