As sementes que mudaram a forma como comemos
Nos finais do século XVIII, o Conde de Hoffmannsegg, botânico, entomologista e ornitólogo alemão, que viajava por Portugal na companhia de outro botânico e naturalista da mesma nacionalidade, Johann Link, constatou que, no Minho, a variedade de milho vindo das Américas (o Zea Mays) estava a substituir outros tipos de cereais, como o milho-miúdo, o trigo ou o centeio.
Os dois botânicos, que registaram as suas observações no livro Voyage en Portugal, fait depuis 1797 jusqu’en 1799 (na tradução francesa, a partir do original alemão), referem que antes da expansão desta nova variedade de milho grosso, que viria a tornar-se a dominante, os habitantes semeavam milhos locais nas encostas e reservavam as planícies para as pastagens. Com a popularidade crescente do milho grosso, começaram a ocupar também as planícies, o que levou à diminuição do gado e ao desaparecimento das outras variedades.
O relato de Hoffmannsegg e de Link, descrevendo uma modificação na paisagem agrícola e, pressupõe-se, nos hábitos alimentares, é uma das muitas fontes que irão ser exploradas pela equipa do projecto ReSeed, dirigido por Dulce Freire, investigadora do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, e financiado com um 1,5 milhões de euros (para cinco anos) pelo Conselho Europeu para a Investigação da Comissão Europeia.
O objectivo é estudar a circulação e o cultivo de sementes na Península Ibérica entre 1750 e 1950. O foco não é tanto a chegada das plantas e sementes a Portugal e a Espanha, o que aconteceu em momentos anteriores, mas sim a forma como elas foram sendo introduzidas na agricultura e, consequentemente, na alimentação, e como é que se adaptaram às diferentes regiões ibéricas.
Para isso, explica Dulce Freire, vão ser cruzados dois tipos de fontes. “Vamos analisar um conjunto de documentos habitualmente utilizados pelos historiadores que estudam a economia, a sociedade, a política e as instituições, desde correspondência, relatórios, contratos, legislação, documentação dos cartórios dos mosteiros e outras instituições religiosas, até à contabilidade e documentos de organizações de assistência, ensino, etc. E vamos cruzá-los com documentos produzidos no âmbito de actividades científicas e académicas, sobretudo as relacionadas com a botânica, a agronomia e a biologia.”
Entre estas últimas estarão publicações como as Floras publicadas desde o século XVIII, os “diários de campo” dos cientistas, os relatórios e artigos científicos que produziram, as memórias, “os milhares de cartas que trocaram com os pares e outros interessados nos temas que estudaram, colecções de herbário com exemplares de plantas que recolheram, colecções de jardins botânicos e de museus de história natural”.
A vantagem de olhar para estes dois tipos de fontes diferentes é poder enriquecer o “olhar mais geral das instituições com as preocupações de detalhe e rigor dos cientistas”. E foram muitos os que desde o século XVIII passaram pela Península Ibérica em “viagens filosóficas”. “Estão identificados mais de uma centena de naturalistas e botânicos que empreenderam este tipo de viagens até meados do século XX”, afirma Dulce Freire. Alguns visitam apenas uma região, outros percorrem um país, outros ainda viajam por toda a península.
Na época, tudo o que dizia respeito às novidades da flora que chegavam de outras paragens despertava grande curiosidade e interesse. Um pouco antes do período abrangido pelo estudo do ReSeed, esteve na Península Ibérica (entre 1564 e 1565) um dos botânicos mais famosos do Renascimento, Charles L’Ecluse, mais conhecido pelo nome em latim de Carolus Clusius.
Para estar a par das novidades, Charles L’Ecluse criou uma rede de 300 correspondentes espalhados pela Europa, nomeadamente em Sevilha, de onde recebia notícias em primeira mão sobre as novas plantas e sementes vindas nos barcos chegados das Américas. E quando viajou por Portugal e Espanha, conta a investigadora do ICS, “identificou muitas espécies ainda desconhecidas para a ciência e desenhou algumas dezenas de plantas com interesse alimentar”, das mediterrânicas, como a oliveira e o medronho, às “recentemente chegadas dos novos mundos, como a batata-doce e o feijão”.
Mas estava longe de ser caso único. O botânico português Félix de Avelar Brotero, que no seu Flora Lusitânica identificou perto de 1800 espécies, é outra fonte, tal como H.M. Willkomm, que viajou pela Península Ibérica na segunda metade do século XIX, o russo Nicolai Vavilov, que fez o mesmo um pouco mais tarde, no início do século XX e que morreu tragicamente à fome nas prisões soviéticas depois de ter dedicado a vida ao estudo de formas de melhorar a produtividade dos cereais, ou os portugueses Júlio Henriques, professor da Universidade de Coimbra, e Gonçalo Sampaio, da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, nos finais do século XIX, inícios do século XX.
“A Península Ibérica é, a partir do século XV, uma porta de entrada e um laboratório fabuloso de experiências a diversos níveis”, frisa Dulce Freire. “Há vários protagonistas das experiências que estão a ser levadas a cabo, desde os agricultores anónimos aos membros da elite que recebem plantas que outros trazem nas viagens, passando pelos monges e outros membros da Igreja. Há experiências a acontecer nos hortos dos mosteiros e dos conventos, nas herdades e quintas das elites, mas também nas hortas. E muito do que está a acontecer suscita o interesse dos investigadores e cientistas de outros países.”
Um dos focos de interesse do projecto ReSeed é a diversidade agro-regional da Península Ibérica, onde se encontram diferentes tipos de clima e de paisagem. “Isso permite fazer vários testes. Uma planta que chega a Lisboa pode ser tão facilmente experimentada no Algarve como no Minho, porque é a mesma entidade política.”
Pretende-se também perceber de que forma elas se disseminavam e os impactos que tiveram nas diferentes regiões. Um exemplo: os pimentos padrón chegaram da América Central trazidos, em finais do século XVI ou inícios do XVII, pelos missionários franciscanos do Convento de São Francisco de Herbón, uma paróquia do município de Padrón, na Galiza. Foram aí aclimatados e acabaram por se disseminar com o nome, hoje famoso, de pimentos padrón.
Em Espanha popularizaram-se, a partir da segunda metade do século XVIII, as Sociedades Económicas Amigas do País, como a Sociedade Bascongada de Amigos del País, no País Basco, a Sociedade de Amigos do País de Cádiz, a Real Sociedad Economica Matritense de Amigos del País ou a Real Sociedad de Amigos del País de Valencia.
“São criadas dezenas destas sociedades, muitas impulsionadas por nobres e membros do clero, que procuram implementar localmente um conjunto de inovações, algumas ligadas à agricultura, novos produtos, novas sementes, mais tarde fertilizantes, novas formas de cultivo.” Existe também um boletim que é distribuído pelos párocos e lido nos púlpitos das igrejas abordando questões ligadas à agricultura.
Em Portugal, terá havido a intenção de criar algo de semelhante às Sociedades Amigas espanholas mas, segundo Dulce Freire, “Domenico Vandelli [o naturalista] que criou o primeiro jardim botânico da Ajuda, tenta fazê-lo na segunda metade do século XVIII, aparentemente com pouco sucesso”.
E qual o interesse que um estudo como este tem para a actualidade? “Queremos perceber até que ponto práticas agrícolas e sementes do passado podem ser viáveis no presente e no futuro e contribuir para uma agricultura sustentável capaz de alimentar uma população mundial crescente.” Isto passa por tentar identificar as plantas que fizeram sucesso na alimentação humana ou na agricultura de um determinado local e saber por que é que desapareceram.
Por outro lado, continua Dulce Freire, “é interessante perceber como é que esta dinâmica de introdução de novas plantas teve impacto na agro-biodiversidade”. Quando, hoje, se fala em biodiversidade, pensa-se na agricultura da chamada “revolução verde”, pós-II Guerra Mundial, mas o que aconteceu antes, nomeadamente essa chegada de sementes vindas de pontos diferentes do mundo, também teve impacto, fazendo desaparecer algumas variedades e tornando outras dominantes.
Por enquanto, o ReSeed tem pouco mais de um mês de vida e está apenas a dar os primeiros passos. Durante os próximos cinco anos há muito trabalho a fazer, muitos documentos a estudar, muitos arquivos a visitar (a equipa irá a outros locais, como Paris ou Berlim, onde estão guardados materiais recolhidos durante missões na Península Ibérica).
No final, será organizada uma exposição para apresentar os resultados. Até lá, no site do projecto (e respectiva página de Facebook) vai ser possível acompanhar o trabalho, através de vídeos que pretendem mostrar os métodos seguidos pelos investigadores (que incluem também entrevistas para recolher testemunhos de pessoas “com experiência na agricultora pré-revolução verde”) e ir descobrindo como é que as plantas do Novo Mundo mudaram, semente a semente, a agricultura e a alimentação no Velho Continente.