Novas culturas estão a mudar a face da agricultura no Algarve
A radiografia da agricultura no Algarve está feita: muitos produtores estão a investir em novas culturas como o abacate e a manga e a aumentar a sua área de produção. Mas neste clima que se perspetiva promissor, os agricultores vivem com duas constantes preocupações: a falta de mão-de-obra e a escassez de água, numa região que sofre com as alterações climáticas. Os investigadores alertam para a necessidade de ter um apertado controlo fitossanitário destas plantas tropicais, produzidas na sua maioria em viveiros fora do País. Ideias que saíram da Conferência Al(l)fruticultura organizada pela revista Vida Rural, em Faro.
João Bento, do JBI Group, é agricultor há 30 anos. Já experimentou tudo: começou pela horticultura, passou pela produção de morangos, hoje dedica-se mais à cultura dos frutos vermelhos (framboesas e mirtilos) e ao abacateiro, cultura onde já explora 66 hectares. Mas ser agricultor é muitas vezes mudar e testar coisas novas. “Quando vi framboesa pela primeira vez disse que nunca iria produzir esse fruto. Hoje produzo 1.200 toneladas”, revela sorrindo. Recentemente embarcou noutra aventura, a produção de manga. Começou com uma primeira experiência há três anos, num terreno de apenas mil metros, e recentemente fez a reconversão de estufas onde plantava frutos vermelhos para produzir esta fruta tropical, numa área de 1,6 hectares.
O projeto ainda está a dar os primeiros passos, mas o empresário considera que só faz sentido apostar em algo que não se pode produzir noutras regiões do País. “O Algarve reúne condições climáticas únicas que é preciso potenciar”, enfatiza. “Tentamos fazer um produto diferente, que na Europa só se consegue em Espanha e na Sicília”, explica João Bento. De acordo com o agricultor, os produtores estrangeiros provam a manga produzida no Algarve e consideram-na de muito boa qualidade. “É importante saber o que o consumidor pretende para não cometer erros no investimento inicial”, refere. Daí que tenha apostado apenas em 2 variedades, uma delas a Osteen, uma manga pouco fibrosa.
Como fazer a diferença em relação aos produtores espanhóis?
Numa plateia que encheu por completo o auditório da Biblioteca Municipal de Faro, João Bento incentivou os produtores algarvios que pretendem começar este negócio a produzir, tal como ele, mangueiras em estufa. “Em Espanha, 95% da manga é produzida ao ar livre. Se fizermos em estufa teremos o fruto antes do país vizinho”, pronto a exportar. “Estamos entre 3 a 5 dias [de viagem] dos mercados europeus e isso poderia ser um fator de concorrência”. Além disso, muitas estufas de frutos vermelhos poderiam ser reconvertidas para produzir manga, não necessitando de grandes investimentos. A manga é um fruto que necessita de calor, mas de menos água que o abacate, o que é também uma mais valia numa região com défice de recursos hídricos. João Bento considera que em relação ao maior produtor mundial, o Brasil, o Algarve poderia também marcar pontos. Ainda que 70% da exportação do lado de lá do Atlântico venha para a Europa, o produto é transportado em contentores durante 2 a 3 semanas, tornando-o mais perecível. “Não é uma manga que chegue na melhor qualidade, tem que ser colhida num estado de maturação muito verde”, salienta. No entanto, é preciso crescer bastante. No Algarve a cultura da mangueira ainda tem pouco significado, com uma área inferior a 20 hectares e uma produção de cerca de 160 toneladas. “Só valorizamos o nosso produto exportando e chegando aos grandes mercados”. Esta certeza de João Bento esbarra naquilo que o produtor algarvio considera ser o grande problema: a organização da agricultura e a sua dimensão. “Se queremos ser competitivos não podemos pensar pequeno”. Para o CEO do JBI Group, é preciso ser melhor também no marketing, de modo a chegar aos mercados europeus. Na sua opinião, o caminho a seguir para comercializar a produção de manga, num primeiro tempo, é aproveitar os canais de comercialização utilizados para escoar os frutos vermelhos, que têm já grande expressão na região do Algarve.
Abacate, a produção que cresce a olhos vistos no Algarve
Se a produção de manga ainda está numa fase embrionária, o abacate aumenta substancialmente a sua área de produção na região sul. De acordo com números apresentados por José Tomás, da Direção Regional de Agricultura e Pescas do Algarve (DRAP Algarve), no painel “As Novas Culturas e modos de produção”, em 2007, este organismo propôs como meta a plantação de 300 hectares de abacateiros. Não chegou a atingir esse objetivo, mas em 2019 a produção do fruto a que já chamam “ouro verde” subiu consideravelmente e ultrapassou os 1.200 hectares. Recentemente, a DRAP Algarve tem recebido pedidos de pareceres para locais de plantação numa área superior a 800 hectares e no PDR 2020 há 26 projetos aprovados para plantações de frutos tropicais, onde se inclui o abacateiro. Apesar dos citrinos estarem longe de serem destronados de “cultura-rainha” no Algarve (representam cerca de 80% da área frutícola, com 16 mil hectares e 340 mil toneladas), o abacate já atingiu perto de 7% da área total.
O que mudou então no panorama da fruticultura no Algarve? A produção de citrinos estabilizou, diminuiu a área de pomar tradicional (caso da amendoeira), continua a aposta nos frutos vermelhos e regista-se um aumento significativo da área do abacateiro. O perfil dos investidores nestas novas culturas está traçado: são maioritariamente da região do Algarve e há muitos jovens agricultores. Alguns dão sequência ao negócio familiar, outros, com formação na área, querem lançar-se num “mundo novo”.
Escassez de água, o eterno problema
Numa região com clima mediterrânico, em que não chove no verão e cada vez menos no inverno, a falta de água é um constrangimento para o abacateiro. É uma cultura que consome muitos recursos hídricos embora em muitos pomares instalados existam já “modernos sistemas de rega, altamente eficazes e que asseguram a poupança de água”, diz Amílcar Duarte, professor da Universidade do Algarve. Na sua intervenção “Os desafios da cultura do abacate”, o investigador defendeu que é necessário equacionar a construção de novas barragens. As barragens, a somar à cultura de áreas de abacateiros, “não só seriam benéficas para a agricultura, como favoreceriam a proteção contra incêndios”. A mesma ideia foi defendida na sua intervenção pelo produtor João Bento. “Se não forem tomadas medidas a médio e longo prazo, então o que é que estamos aqui a fazer?”, questiona. O agricultor lembra que “as reservas de água são as mesmas, mas cada vez chove menos” e culturas como os citrinos e os abacateiros, a par com o turismo na região, são grandes consumidores de água. João Bento faz um apelo aos governantes para que olhem com atenção para esta questão. “Só vamos perceber que o assunto é grave quando faltar água para o consumo humano?”, questiona.
Valorização do Produto: Criação de uma marca portuguesa
“No Algarve há bons pomares de abacateiros, com condições para ter alta produtividade e que não nos devem envergonhar em relação a outros países”. No entanto, o investigador Amílcar Duarte lamenta que grande parte da produção seja vendida através de operadores espanhóis (duas organizações da Andaluzia) e que a região algarvia não tenha sabido ainda apostar/arriscar na comercialização. “A criação de uma marca portuguesa permitiria valorizar mais o produto e ficar com as mais-valias da comercialização”, defende. “Do ponto de vista comercial seria mais viável e vantajoso vender um produto com menos tratamentos fitossanitários e produzido na Europa, com menor pegada ecológica” em comparação com outros países produtores.
Modo de produção e pragas
O investigador alerta para a necessidade de saber escolher bem o local onde se vai implantar a produção de abacate. “As encostas voltadas a sul são preferíveis para as novas plantações. Os produtores devem evitar os vales profundos, com excesso de humidade e sujeitos a geada”, adianta.
No Algarve, a variedade Hass é a mais importante, mas utilizar apenas uma espécie de abacateiro leva a planta a ser mais suscetível a doenças. A falta de viveiristas que tenham estas plantas tropicais leva a maior parte dos produtores a importar as plantas de viveiros em Espanha. Por isso, “há que evitar a importação de material contaminado e a instalação de grandes manchas contínuas de abacateiros, preferindo o mosaico com outras culturas”, defende.
Leonor Cruz, outra oradora na conferência, mostrou-se mais pessimista. A investigadora do Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária (INIAV) considera que as culturas dos frutos tropicais, mas também dos citrinos e dos frutos vermelhos, estão sujeitas ao perigo das ameaças fitossanitárias, que acarretam grandes problemas de produtividade e trazem perdas para o agricultor. Por esse motivo, a investigadora defende que quando se compra as plantas em países estrangeiros é necessário exigir todos os certificados fitossanitários, testar as plantas e ter o máximo cuidado. “Isto não é como a pera rocha que é produzida em Portugal. Num contexto de globalização, e com as novas culturas, podemos estar a introduzir doenças que não tínhamos no País e cujo risco não conhecemos”, adianta. Acresce que, com as alterações climáticas, “se uma planta já está stressada com a falta de água, os hospedeiros podem entrar com maior facilidade”.
Mesa redonda: Como garantir o recrutamento da mão de obra em legalidade e com segurança?
Bruno Cruz e Luís Pinheiro têm em comum pertencerem a empresas agrícolas que não vivem sem a mão de obra de trabalhadores estrangeiros.
A Maravilha Farms, da qual Luís Pinheiro é diretor-geral, no pico de maior trabalho necessita de 800 a 900 trabalhadores. Em média têm sempre cerca de 700 pessoas a trabalharem nas suas explorações de frutos vermelhos situadas nos concelhos de Odemira e Tavira. Bruno Cruz é diretor de Recursos Humanos na empresa alentejana de Vale da Rosa (famosa por produzir uvas sem grainha). Nesta altura, em plena época de vindima, tem mais de mil pessoas de 21 nacionalidades a trabalhar. Destes, apenas 254 são portugueses. Numa mesa redonda moderada por Isabel Martins, diretora da Vida Rural, Bruno Cruz revelou ter “uma dificuldade enorme em atrair e reter talento”. Ao não conseguir que os trabalhadores permaneçam de um ano para o outro torna-se obrigatório que todas as campanhas seja necessário proceder a nova formação dos colaboradores. “As herdades de Vale da Rosa estão situadas em Ferreira do Alentejo e Aljustrel, concelhos com um nível de desertificação e envelhecimento populacional muito elevados”, salienta Bruno Cruz. A somar a esta situação, a empresa tem que viver ainda com a concorrência do turismo, que retira mão de obra ao setor agrícola, “daí que seja cada vez mais difícil atrair talento local”. Para captar e reter trabalhadores, o Vale da Rosa está a tentar criar um pacote de incentivos “para que as pessoas se sintam valorizadas e tenham uma carreira digna”.
Na Maravilha Farms, reter trabalhadores de um ano para o outro está a ser mais fácil. “Temos tido taxas de regresso [de trabalhadores] interessantes, estamos acima dos 65%”, revela Luís Pinheiro. O CEO da empresa adianta que quando termina o contrato, o trabalhador sai com um contrato-promessa para regressar no ano seguinte. Além disso, dão incentivos aos colaboradores para progressão constante na carreira de acordo com a sua produtividade, bem como seguro de saúde para quem trabalha o ano inteiro. A integração dos trabalhadores imigrantes é essencial. “Estamos a realizar um projeto de ensino de português para estrangeiros, em colaboração com o Agrupamento de Escolas de S. Teotónio, em que 500 pessoas vão ter aulas noturnas para aprendizagem da língua”, revela. A procura constante de habitações para os trabalhadores é um dos problemas com que se debatem as empresas agrícolas. O Vale da Rosa assegura alojamento para 350 pessoas, quer em unidades pré-fabricadas, quer em casas alugadas ou propriedade da empresa. Para o futuro “estamos a tentar reconverter uma área e investir num alojamento para mais 200 pessoas”, revela Bruno Cruz.
Recrutamento planeado
A empresa Vale da Rosa tenta contratar diretamente os trabalhadores através do Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP) e das autarquias. Mas apenas cerca de 35% dos colaboradores chegam desta forma e têm vínculo direto, os restantes são angariados através de empresas de trabalho temporário que trazem imigrantes de vários locais do mundo. Esta empresa produtora de uva de mesa tem ainda um protocolo com o Governo da Madeira através do qual empregou e fixou famílias de 55 trabalhadores venezuelanos.
Na empresa produtora de frutos vermelhos Maravilha Farms, o recrutamento é feito, entre outras formas, através de protocolos com os serviços consulares da Tailândia e Ucrânia, de onde chega muita mão de obra. Tanto no Vale da Rosa como na Maravilha Farms, tudo tem que ser planeado cerca de 6 meses antes da época das colheitas.
Na mesa redonda, a delegada de Faro do IEFP, Natália Torégão, falou sobre o apoio concedido às empresas quando recrutam imigrantes e lembrou que a Madre Fruta, Organização de Produtores algarvia que junta cerca de 50 produtores de frutos vermelhos, já recrutou através do IEFP centenas de pessoas através da rede europeia EURES. Na plateia, Isa Dias, representante da Madre Fruta, alertou para o facto de a mão de obra a nível europeia estar a diminuir. “Em 2015 estivemos na Bulgária num processo de recrutamento e apareceram-nos 1.500 pessoas para três dias de entrevistas”, conta. “Em 2017, por exemplo, só apareceram 170 pessoas”. O número de interessados tem vindo a diminuir de ano para ano, sendo necessário ir buscar trabalhadores a países terceiros como o Bangladesh ou a Índia. Esta organização orgulha-se das suas boas práticas: tem protocolos com a Administração Regional de Saúde (ARS) do Algarve, promovendo campanhas de vacinação aos seus trabalhadores, e dá várias ações de formação para ensinar português aos imigrantes, levando as aulas até ao interior das quintas.
Robotização vai demorar
A robotização pode ser a resposta para este problema? “As perspetivas são para que não haja grandes mudanças nos próximos 10 anos”, acredita Luís Pinheiro. O responsável pela Maravilha Farms considera que a questão da robotização acabará por acontecer mais dia, menos dia, visto que a falta de mão de obra é generalizada na Europa (na Alemanha este ano não se conseguiu colher toda a framboesa e no ano passado aconteceu o mesmo no Reino Unido). No entanto, não é fácil substituir o trabalho humano. “Nas frutícolas os produtos são mais perecíveis e têm que ser colhidos um a um”. Na opinião deste produtor, há que caminhar para soluções intermédias, automatizando aquilo que for possível. Mas “não se pode nunca substituir mil trabalhadores por mil robots”, garante.