publicado a: 2018-03-06

Seca. Vacas magras e plantações perdidas. O que falta para a cidade olhar para o campo?

Enquanto na agricultura se somam os prejuízos por causa da seca, quem vive no campo pergunta: estão os portugueses da cidade verdadeiramente preocupados com os portugueses do campo?


Diz-se que aquilo que os olhos não vêem, o coração não sente. Sabedoria popular sem fundamentação científica, mas na qual todos reconhecem um fundo de verdade. Nesta viagem pelas consequências da falta de chuva, a reportagem da Renascença passou por Coruche, Évora, Beja e Alcácer do Sal, onde existe o sentimento de que o país se divide em duas realidades: a dos agricultores, que há muito se deparam com os estragos da seca; e a da maioria dos portugueses, que vive nas cidades, indiferente à terra árida e às barragens vazias.

Os agricultores avisam que, se nada for feito, pode iniciar-se uma bola de neve que congelaria toda a economia em torno da exploração da terra e aumentaria gravemente a dependência do exterior.

Pedro D’Orey Manoel trocou a capital por uma quinta perto de Évora há 25 anos. Percorre de jipe a propriedade com mais de mil hectares gerida por ele e pela mulher para mostrar as marcas que a falta de água já deixou na exploração.

Para num pasto onde estão quase duas centenas de vacas e bezerros. A terra está “rapada”. Desde Agosto que Pedro tem de “dar de comer à mão” ao gado - a expressão não é literal, mas designa uma forma artificial de alimentação. Significa ir ao armazém retirar as reservas de fenos, palha e silagem e espalhá-las pelo campo.

As vacas e os bezerros fogem de Pedro. Mantêm uma distância segura dos homens, que só diminui quando há comida envolvida. Quando o vaqueiro se aproxima de trator e espalha uma mistura de palha e silagem, os animais que estão mais longe até correm, agora menos preocupados com a distância de segurança. “Se estivessem satisfeitos com o pasto, não viriam assim. Nem ligavam à máquina”, esclarece Pedro D’Orey Manoel.

Em anos normais, Pedro alimenta os animais “à mão” entre Outubro e meados de Janeiro. O problema é que a seca do ano passado obrigou-o a recorrer aos alimentos armazenados logo em Agosto, situação que se irá prolongar até Março ou Abril. “Gastámos o dobro da comida. A reserva que tínhamos para dois anos foi gasta”.

As reservas estão no fim e os custos não param de aumentar. Não é só o pasto natural que desapareceu, é também o preço da comida que em alguns casos triplicou. “Nós normalmente temos um custo por vaca, com tudo incluído - alimentação, parte fitossanitária, mão-de-obra, máquinas - de entre 400 e 500 euros por ano. Neste momento estamos com custos que têm mais 50% em cima. Estamos com 600/700 euros por vaca”. Pedro e a mulher têm cerca de mil vacas, o que significa um aumento nos custos entre os cem e os duzentos mil euros.

Os custos económicos não são as únicas consequências da seca. Os animais precisam do pasto natural e não estão bem. Por isso, os vaqueiros dizem que elas estão “feias de magras”. “Por muito que nós consigamos equilibrar a alimentação das vacas com alimentos conservados, não há nada como a pastagem natural”, argumenta o engenheiro agrónomo.

Pedro reconhece ter ainda alguma capacidade para enfrentar este período, mas garante que há “situações dramáticas” no país. A constatação é reforçada num relatório divulgado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) a 20 de Fevereiro: “a grande maioria das explorações agropecuárias já esgotou as reservas de palhas e fenos, prevendo-se que tenham de continuar a recorrer a alimentos adquiridos”.

O agricultor Pedro D’Orey Manoel ajuda a fazer a ligação entre a realidade descrita em papéis e a realidade sentida no campo: “O animal é como um humano. Ele gasta a reserva de gordura e depois quando começa a gastar músculo, começa a ser dramático. As vacas já não se cobrem, não têm bezerros e não há resultado na exploração. É um círculo vicioso”.

Janeiro foi o 10.º mês consecutivo com valores de precipitação inferiores à média. No final do primeiro mês do ano, 56% do território continental nacional estava em seca severa, 40% em seca moderada e 4% com seca fraca. Uma soma simples mostra-nos que 100% do território nacional registava algum tipo de seca. Os últimos dias de Fevereiro foram chuvosos, mas os problemas que se acumulam há meses não se resolvem numa semana.

De volta ao jipe, Pedro percorre mais uns quilómetros até à zona de regadio da propriedade. São 30 hectares dentro dos mil, onde espera fazer crescer parte da alimentação das vacas.

Uma sonda de rega mede os níveis de água no solo e a água da chuva. Está coberta de dejetos de pássaro secos. Não se vê uma gota. A sonda permite cruzar os dados e fazer uma gestão eficiente da água, mas, para isso, é preciso haver água em primeiro lugar.

À volta, um campo verde de azevém engana um primeiro olhar, mas o segundo já repara nas linhas das sementeiras, que já deviam estar tapadas. As plantas quase não cresceram. Pedro agacha-se e segura as folhas nas mãos. De perto, vê-se ainda melhor o que ele quer mostrar. Não são precisos gráficos ou números complicados. As folhas que pareciam verdes estão na verdade a definhar, com as pontas amarelas. A cor não engana. Mesmo que chova, estas plantas já não vão recuperar.

A “indústria” do interior

Pedro D’Orey Manoel tem uma certeza quanto a 2018: “vamos ter prejuízo”. A chuva tem vindo a diminuir desde 2013. “Passámos de 680/700 milímetros há cinco anos para o ano passado em que choveram 400. E este ano [antes das chuvas do final de Fevereiro] ainda não chegámos aos 200”.

A nível nacional, os prejuízos estão estimados em mais de 1,1 mil milhões de euros no saldo da balança comercial já este ano. Os cálculos são da Federação Nacional de Regantes de Portugal (Fenareg). Numa visita à sede da associação, em Coruche, o presidente, José Núncio, diz que as contas foram feitas olhando para o nível de água disponível nas albufeiras para a agricultura. Mais de 50% das áreas irrigáveis poderão não o ser.

“O agricultor de regadio não vai fazer as culturas, e os agricultores que têm gado estão a reduzir os efectivos”, acrescenta. “Acabam por ter de vender as vacas e as ovelhas porque estão a ver que não vão ter capacidade para as alimentar”.

E se as previsões para a campanha de primavera/verão não são as melhores, os resultados do INE mostram já uma redução a mínimos históricos na produção de cereais de inverno em Portugal: 121 mil hectares. É um número que tem vindo a diminuir há cinco anos e que atingiu agora o valor mais baixo dos últimos cem anos.

Neste momento, estão em maior risco as produções de milho e arroz, que usam mais água. A situação é especialmente preocupante no Vale do Sado, onde o cultivo do arroz se tornou tradição. Num ano normal, plantam-se 7.500 hectares de arroz na região. Para este ano, estão previstos 600, revela o Agrupamento de Produtores de Arroz do Vale do Sado (APARROZ).

O cenário é negro, e José Núncio teme que as constantes chamadas de atenção do setor agrícola passem ao lado da maior parte dos portugueses, que vive na cidade. “Lá estão estes gajos outra vez a queixar-se. Agora é porque não chove. Quando chover, é porque chove”, antecipa.

José Núncio teme que a distância entre o campo e a cidade relegue para segundo plano uma preocupação que deveria ser de todos. O último Censos (2011) revela que, embora representem apenas 18% do território nacional, é nas áreas predominantemente urbanas que vive a maior parte dos portugueses: 72%. Nas áreas rurais, que representam três quintos do território, vivem apenas 13% da população.

“A agricultura é, entre aspas, a indústria do interior e nós vimos o que aconteceu, infelizmente, no verão com os incêndios e o abandono que há da agricultura em determinadas regiões do país. Foi onde ardeu. Não são só preocupações económicas, mas há preocupações de gestão do território, sociais e de solidariedade”, alerta.

O deserto e o oásis no Alentejo

O boletim de armazenamento mensal nas albufeiras de Portugal continental mostrava, já no final do Fevereiro e depois da chuva, duas realidades contrastantes no Alentejo: no litoral, no Vale do Sado, os valores mais baixos do país, com apenas 29% da capacidade preenchida, quando a média nesta altura do ano ronda os 60%; no interior, na bacia do Guadiana, o terceiro valor mais alto, com 62,9%.

“A bacia do Guadiana está numa boa situação, mas é simplesmente por causa do Alqueva”, explica José Núncio. A barragem que começou a ser enchida em 2002 estava com 66% da sua capacidade preenchida, um número ligeiramente inferior ao registado no final de Janeiro.

A barragem do Alqueva é a maior reserva estratégica de água na Europa, com capacidade de armazenamento para mais de quatro mil milhões de metros cúbicos de água. É o oásis que aguentou a região no verão passado. “Se as albufeiras que estão ligadas a Alqueva não estivessem, nós teríamos tido muita dificuldade no abastecimento público a Évora e a Beja”, sublinha José Pedro Salema, presidente da Empresa de Desenvolvimento e Infra-estruturas do Alqueva, S. A. (EDIA), com sede em Beja.

A estrutura foi pensada para armazenar a água necessária durante quatro anos de seca. Recentemente, o empresário José Roquette, cuja Herdade do Esporão beneficia da água do Alqueva, manifestou na Renascença preocupação em relação ao futuro da barragem. “O Alqueva corre o sério risco de não ser utilizável já a partir de 2019”, disse.

José Pedro Salema rejeita esta preocupação. “Em 2019, e fazendo umas contas muito simplistas, nós teremos seguramente água. Hoje estão no Alqueva, utilizáveis, 1700 milhões de metros cúbicos. Nós, o ano passado, utilizámos 400. Portanto, se fizermos uma conta muito simples, vemos que 1700 vai dar claramente para a campanha de 2019, e assegurar os caudais ecológicos que são da mesma ordem. E conseguimos fazer isto duas vezes”.

“Mesmo se não chovesse mais nada”, insiste, a utilização de água da barragem não estaria em causa. O responsável reconhece, no entanto, que os últimos três anos foram “fraquinhos” em termos de afluência de água à albufeira, mas rejeita alarmismos. “Este tempo seco pode mudar numa questão de dias. Aliás, se olharmos para os anos muito mais próximos, em 2016, a água toda que chegou a Alqueva, chegou no princípio do mês de Maio”.

Menos tranquila está Raquel Carvalho, também ela engenheira agrónoma e agricultora na região de Alcácer do Sal, em plena bacia do Sado. Com uma exploração de 400 hectares, 320 em sequeiro e 80 em regadio que seria preenchido, num ano normal, com arroz, pondera este ano não lançar nenhuma semente deste cereal.

A falta de água na barragem de Pego do Altar, em níveis mínimos já desde o ano passado, faz com que, pela primeira vez, Raquel não tenha qualquer água disponível para o cultivo. E nem a chuva dos últimos dias serviu para alterar o panorama: não chega para fazer o rio ganhar o caudal necessário.

Tal como Raquel Carvalho, muitos agricultores na região chegam às mesmas conclusões. De acordo com a associação de produtores de arroz, mais de 90% do cultivo no Vale do Sado está em risco. As associações de regantes chegaram a ponderar a compra de água à barragem do Alqueva, mas o elevado custo desta operação levou os agricultores a afastarem a possibilidade.

A seca ficou à porta das cidades

José Pedro Salema partilha da visão de José Núncio: o problema da seca não preocupa a maior parte dos portugueses porque ainda não é um problema urbano. “Toda a gente que está ligada à agricultura está mesmo preocupada. Agora, à população que não tem ligação ao meio rural, eu acho que isso não chegou ainda”, reflete.

Já o agricultor Pedro D’Orey Manoel explica que a globalização faz com que o consumidor comum não sinta os efeitos da seca nas quebras de produção. Os produtos certificados com denominações de origem portuguesa como a carne e os cereais vão certamente subir o preço, mas “é muito fácil os supermercados irem buscar produtos a outras partes do globo” para encherem as prateleiras.

Depois, há os efeitos a longo prazo de uma quebra na agricultura, que não se sabe como podem terminar, mas cuja cadeia Pedro D’Orey Manoel não tem dificuldade em desenhar: se “não vamos semear, não vamos utilizar gasóleo, os homens das oficinas não vão ter serviços, toda a economia que roda à volta disto para. E, depois, não temos comida. Vamos depender mais do exterior, o que vai piorar o Produto Interno Bruto”.

Mas isto não tem de ser uma bola de neve que não para de crescer. O presidente da EDIA, José Pedro Salema, arrisca uma proposta: “Portugal não tem falta de água, tem recursos hídricos muito significativos. Tem é um problema de distribuição dessa água ao longo do ano. Se tivermos mais armazenamento, mais barragens, podemos resolver esse problema”.

José Núncio, presidente da Federação Nacional de Regantes aponta a mesma solução. “Quem não tem a sorte de ter ou estar na proximidade de uma boca de rega do Alqueva, tem o problema da seca em cima”, explica.

No Tejo, o maior rio português, transformado este inverno num “fiozinho de água cheio de bancos de areia”, poderão ser construídos “novos reservatórios”, sugere José Núncio. Novos oásis, como o Alqueva é no Alentejo, que ajudem os agricultores a resistir a longos períodos de seca como o que vivemos actualmente.

Ainda assim, a curto prazo, a solução tem de passar pela chuva. Um ano de 2018 semelhante ao de 2017 em termos de pluviosidade será ainda mais difícil de ultrapassar. Previsões para o ano, ninguém arrisca.

A agricultura precisa de “cuidados paliativos”, sublinha José Núncio, mas “a primeira prioridade é que chova, a segunda é que chova e a terceira é que chova”.

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